terça-feira, 24 de março de 2015

      Aff!!    
                                     
Outro dia uma velhinha me parou no meio da rua.
Apresentou-se limpando a garganta e ajeitando os cabelos.  Depois sorriu meio amarelo e, sem piscar, perguntou:
-- Querida! Você quer me adotar?
Confesso que a única coisa que pensei na hora foi que alguém havia deixado uma senhora de muita idade e atrapalhada das ideias escapar de casa.
-- Quer me adotar?
Hesitei um pouco achando que não devia dar atenção, mas acabei perguntando:
-- Desculpa.  A senhora disse adotar?
-- Isso!  Adotar!
São momentos assim que fazem com que eu tenha um quebra pau com Deus. 
Por que, Senhor?  Por que eu?  Está na cara que lá vem encrenca e eu vou ficar numa daquelas situações infames. 
-- Adotar, menina!  Olha, podemos fazer de conta que sou um cachorrinho...Um poodle. Você gosta de poodles?
-- Para falar a verdade, não.  São bonitinhos mas muito nervosos. Latem e pulam demais para o meu gosto.
-- É verdade! E eu não sou nervosa. Nem posso ficar pulando.  Sou uma terceira idade bem calma, de bem com a vida...  Ah! Já sei.  Posso ser um daqueles pugs com aquela carona de bonachão e ficar quietinha num canto, dormindo.   Que tal?  Topa?
Fiquei pensando que ela nem tinha os olhos meio arregalados ou rugas de gordura, coitada, mas a associação de bonachão valia e mostrava que ela, aparentemente, sabia o que dizia.
-- Ah! Mas esses bonachões podem se transformar em invocadões a qualquer momento, não podem?    A senhora tem cara de boazinha, tranquila - argumento, tentando escapar da situação inusitada.
-- E sou!  Muito tranquila!  
Olha, para melhorar o pacote de adoção, posso fazer a maior farra quando você chegar do trabalho! Sem abanar o rabo, que não tenho.   Posso mostrar com meu olhar e meu saracotear que estou muito feliz com a sua volta, que você é tudo para mim, que sou sua melhor amiga.  E você nem precisa conversar comigo porque conversas criam vínculos; vínculos criam afetos e afetos geram compromissos, intimidades.  E isso é coisa de gente, né? E gente de hoje em dia quer tudo superficial e rápido.     Eu serei apenas um cachorrinho te esperando chegar do trabalho.  Aliás, você vai querer que eu seja macho ou fêmea? Não faz muita diferença porque, na verdade, você não precisará me levar para passear todas as manhãs: consigo usar o banheiro sem ajuda alguma.
-- Desculpa, a senhora está precisando de companhia!?
-- Não.  Só quero ser adotada como se adotam cachorrinhos.
-- Sabe o que é? Eu já tenho um cachorrinho.  Não sei se daria certo.
-- Ah, meu bem! Não se preocupe.  Prometo não fazer xixi no meio da sua sala para demarcar território. Vou deixá-lo no comando.
-- Sei não...Vocês vão acabar brigando.
-- Ok.  Vamos ver!  Posso ser gente enquanto você não está em casa e fazer uma faxina dia sim, dia não.  Todo dia não vou aguentar.   Deixo tudo limpinho, cheiroso e quando você chegar: puf!  Viro um cachorrinho.      Ah, dona...Vai...Me adota!  É simples.  Você só tem de dizer que sou sua melhor amiga, que só eu te entendo e te faço companhia tanto nos momentos bons quanto nos ruins. E você tem de dizer tudo isso enquanto me aperta, me abraça, me espreme que é para eu sentir o contato, o afago e o carinho que tem por mim.
-- A senhora deve ser louca! 
-- Não, não!!  Só queria ser tratada do jeito que tratam os cachorrinhos hoje em dia.   Pensando bem, posso montar uma feira de adoções no asilo em que moro. Aí, quem sabe, arrumo a situação de todos. Pode ser num domingo! O que acha? Velhinhos em exposição.  Sentadinhos em poltronas  - não vou colocá-los em gaiolas como os cachorrinhos, claro.  Mas posso até colocar um histórico das condições físicas e mentais num cartaz pregado atrás da cadeira: dentadura nova; sem Alzheimer; pressão e diabetes controladas; sem necessidade de óculos ou assistência para ir ao banheiro.
É!  Preciso bolar propagandas, não acha?  Ou você já viu alguém ir a um asilo e adotar um velhinho num passeio de final de semana?

Sabe gente, até que os dois estão se entendendo muito bem e dispensei a senhorinha do trabalho braçal, claro.
O problema é a quem dar atenção primeiro quando chego em casa. 
Tão animados!!

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