domingo, 29 de março de 2015

Rita



              Confusões com ligações telefônicas são comuns, 
              todo mundo sabe.
Número errado, ddi errado.
O “Ô, desculpa, foi engano,” virou mato.
Isso quando quem liga não é o tu-tu-tu-tu.
Falha de dedo. Tecla enroscada.  Anotação do número errado!
Os caras se matam para pendurar um satélite na nossa cabeça e a gente errando apertos.
Aqui em casa é comum ligarem perguntando, no número mais novo, se é de um tal colégio - porque esse número, algum dia, já deve ter servido para causas mais nobres do que meus míseros papos com minhas amigas.
Normal.
Mas outro dia foi de doer.
Atendo o número de tantos enganos e a voz masculina já vai disparando em tom doce, suave, quase sussurrado, mas firme:
Oi Ritinha, sou eu.  Me desculpa por ontem, por favor.
Acho que o sr.  ligou no número errado, respondo.
Não Ritinha.  Não faz isso não, meu amor.
Mas não é a Ritinha.
Ah! Claro.  Você está no trabalho, eu mesmo liguei.  OK.  Tá disfarçando, né meu amor?!
Moço, já disse que o sr. ligou no número errado.  Aqui é uma residência!  Por que eu disfarçaria meu nome no meu próprio trabalho?
Puxa Rita, você é firme nisso de disfarçar. Gostei.  Olha, fica quietinha que eu vou falando.  Só ouve, tá meu amor?!   É importante eu deixar tudo esclarecido sobre ontem.
Ai caramba!   Resolvo ouvir que é pra ver se depois ELE me ouve.
Fico quieta e ele prossegue feito uma metralhadora disparada.
Olha meu amor...Sei que ontem eu fui meio desajeitado, não fiz muito bem as manobras e acabou saindo tudo muito esquisito.
Ah! Claro!   Manobras! 
Fico aliviada.  Deve ser um aluno ligando pra sua professora da auto-escola!.
Não se preocupe, eu respondo.   Da próxima vez você vai se sair melhor.   Ficou nervoso, ansioso.  Também não é pra menos, não é?  Mas agora me ouve, por fav....
Ai Rita!  Por isso que gosto de você.  Sempre compreensiva!  Pensei que vc não perdoaria o não conhecer as dimensões, o ritmo que não acertei, o local inadequado e nada acolhedor...
Calma...hum...
Antoninho.   Adoro quando você me chama de Antoninho.
Calma, Antoninho.   Você terá sua próxima chance.
Vixi! Por que falei isso? Acho que assim ficou complicado. 
Pensei que ele pretendia marcar outra aula, outra prova...e tentei lembrá-lo de que eu não era a Rita...mas que ficasse tranquilo.
Mas claro que é!  Conheço essa voz.  Aliás agora conheço tudo de você...inteirinha, todinha...E quero que você saiba que você merecia um lugar melhor, e uma explosão de emoção...Sei que não foi o que você sonhava...Mas pelo menos pudemos ficar sozinhos e sem medo de sermos descobertos...
Meu Deus!  Esse cara é maluco!  Aviso que vou desligar.  Que é tudo um grande engano...que não sou a Rita - embora nessas alturas eu já estivesse encafifada com o que esse cara pudesse ter aprontado com a tal Rita.
Não, não, não.  Por favor, Rita.   Não faz assim. Não desliga. Estou me abrindo com você.  Pensa que é fácil pra um homem admitir que não foi eficiente? Quero dizer, foi bom, mas podia ter sido melhor.
Chega!
Desligo o telefone.
Toca de novo e o Antoninho recomeça:  Você quer mesmo acabar com tudo assim desse jeito? Pergunta em tom irônico.
Cruzes!  O cara está espremendo a Rita que não é a Rita, dando satisfações e explicações... Fico apavorada pensando que quando ele encontrar a Rita verdadeira ele será todo dócil e gentil, pensando que está tudo esclarecido e ela, que não fará a mínima ideia de sua franqueza e hombridade, vai lhe dar uma bolsada na orelha.  Porque a julgar pelo que ele diz foi uma noite desastrosa.
Escute, Antoninho.  Preste bastante atenção:  não sou a Rita.  Ligue no número certo e fale tudo isso a ela.  Você deve ser uma pessoa muito legal, mas eu não sou a Rita e embora tenha entendido suas explicações, não poderei te dar uma nova chance.
Que é isso Ritinha, sem chances?
Não, Antoninho.  Não sou a Rita, mas se fosse, te daria uma chance, sim.
Ah é?  E o que você faria?
Eu te chamaria pra tentar “manobrar” de novo.  Essas coisas requerem intimidade, prática...
Sério?
Sério.
Obrigada, dona.   Agora vou ligar pra Ritinha.
Acho que vou mandar desligar essa linha telefônica.


terça-feira, 24 de março de 2015

      Aff!!    
                                     
Outro dia uma velhinha me parou no meio da rua.
Apresentou-se limpando a garganta e ajeitando os cabelos.  Depois sorriu meio amarelo e, sem piscar, perguntou:
-- Querida! Você quer me adotar?
Confesso que a única coisa que pensei na hora foi que alguém havia deixado uma senhora de muita idade e atrapalhada das ideias escapar de casa.
-- Quer me adotar?
Hesitei um pouco achando que não devia dar atenção, mas acabei perguntando:
-- Desculpa.  A senhora disse adotar?
-- Isso!  Adotar!
São momentos assim que fazem com que eu tenha um quebra pau com Deus. 
Por que, Senhor?  Por que eu?  Está na cara que lá vem encrenca e eu vou ficar numa daquelas situações infames. 
-- Adotar, menina!  Olha, podemos fazer de conta que sou um cachorrinho...Um poodle. Você gosta de poodles?
-- Para falar a verdade, não.  São bonitinhos mas muito nervosos. Latem e pulam demais para o meu gosto.
-- É verdade! E eu não sou nervosa. Nem posso ficar pulando.  Sou uma terceira idade bem calma, de bem com a vida...  Ah! Já sei.  Posso ser um daqueles pugs com aquela carona de bonachão e ficar quietinha num canto, dormindo.   Que tal?  Topa?
Fiquei pensando que ela nem tinha os olhos meio arregalados ou rugas de gordura, coitada, mas a associação de bonachão valia e mostrava que ela, aparentemente, sabia o que dizia.
-- Ah! Mas esses bonachões podem se transformar em invocadões a qualquer momento, não podem?    A senhora tem cara de boazinha, tranquila - argumento, tentando escapar da situação inusitada.
-- E sou!  Muito tranquila!  
Olha, para melhorar o pacote de adoção, posso fazer a maior farra quando você chegar do trabalho! Sem abanar o rabo, que não tenho.   Posso mostrar com meu olhar e meu saracotear que estou muito feliz com a sua volta, que você é tudo para mim, que sou sua melhor amiga.  E você nem precisa conversar comigo porque conversas criam vínculos; vínculos criam afetos e afetos geram compromissos, intimidades.  E isso é coisa de gente, né? E gente de hoje em dia quer tudo superficial e rápido.     Eu serei apenas um cachorrinho te esperando chegar do trabalho.  Aliás, você vai querer que eu seja macho ou fêmea? Não faz muita diferença porque, na verdade, você não precisará me levar para passear todas as manhãs: consigo usar o banheiro sem ajuda alguma.
-- Desculpa, a senhora está precisando de companhia!?
-- Não.  Só quero ser adotada como se adotam cachorrinhos.
-- Sabe o que é? Eu já tenho um cachorrinho.  Não sei se daria certo.
-- Ah, meu bem! Não se preocupe.  Prometo não fazer xixi no meio da sua sala para demarcar território. Vou deixá-lo no comando.
-- Sei não...Vocês vão acabar brigando.
-- Ok.  Vamos ver!  Posso ser gente enquanto você não está em casa e fazer uma faxina dia sim, dia não.  Todo dia não vou aguentar.   Deixo tudo limpinho, cheiroso e quando você chegar: puf!  Viro um cachorrinho.      Ah, dona...Vai...Me adota!  É simples.  Você só tem de dizer que sou sua melhor amiga, que só eu te entendo e te faço companhia tanto nos momentos bons quanto nos ruins. E você tem de dizer tudo isso enquanto me aperta, me abraça, me espreme que é para eu sentir o contato, o afago e o carinho que tem por mim.
-- A senhora deve ser louca! 
-- Não, não!!  Só queria ser tratada do jeito que tratam os cachorrinhos hoje em dia.   Pensando bem, posso montar uma feira de adoções no asilo em que moro. Aí, quem sabe, arrumo a situação de todos. Pode ser num domingo! O que acha? Velhinhos em exposição.  Sentadinhos em poltronas  - não vou colocá-los em gaiolas como os cachorrinhos, claro.  Mas posso até colocar um histórico das condições físicas e mentais num cartaz pregado atrás da cadeira: dentadura nova; sem Alzheimer; pressão e diabetes controladas; sem necessidade de óculos ou assistência para ir ao banheiro.
É!  Preciso bolar propagandas, não acha?  Ou você já viu alguém ir a um asilo e adotar um velhinho num passeio de final de semana?

Sabe gente, até que os dois estão se entendendo muito bem e dispensei a senhorinha do trabalho braçal, claro.
O problema é a quem dar atenção primeiro quando chego em casa. 
Tão animados!!

domingo, 22 de março de 2015


Louco


Todo mundo conhece um louco.
O louco do bairro, o louco da praia, do farol, o de dar dó, o de pedra.

Loucos de todos os tipos aparecem por aí e compõem um quadro que tanto pode nos tirar das nossas loucuras, como nos levar a ela.

Quem é que nunca parou para pensar de onde veio essa estória do louco do saco, do louco que mora cemitério? 
Na espuma de qual onda o louco da praia começou a ser louco? 

Você tem mesmo pena do louco de dar dó?

Quem já não pensou: Nossa! Que louco! Ainda bem que (ou que pena que!) nunca surtei.  Ou viu um louco e ouviu o grilo falante sussurrando: um dia você vai enlouquecer assim, igualzinho.

Talvez você seja o louco. Observa e pensa sobre os loucos.
Talvez te observem e você nem perceba; você é um dos loucos.

E agora temos o louco tecnológico. 
Um dos loucos mais modernos, próximo ao louco por jogos virtuais, e do louco por novidades do mundo cibernético, temos agora o louco da planilha. O louco do Excel.

Esse louco é mais discreto do que os outros porque não fica anunciando sua loucura nas ruas da cidade.
    
Diferente dos outros loucos, quer parecer normal.  
Esconde o fato por pura insegurança.
E são loucos da planilha justamente porque são inseguros.
Eu diria que é um dos TOCs do mundo virtual. 
TOC, sim,  porque impede o sujeito de pensar livremente. 
Ele não pensa no assunto se não estiver vendo tudo numa planilha.

Esses loucos da planilha pensam que usando a bendita, planejam a vida e guardam-se de imprevistos porque têm uma visão geral de muitas variáveis.

Colocando tudo em colunas, linhas e aplicando fórmulas, pensam que tudo vai dar certo e não aparecerão percalços nos assuntos. 

Controle, ou falta dele, os levam a pensar e administrar a vida em formato de passo a passo bem feitinho para chegar a um final feliz.

Nada contra as planilhas – utilíssimas em muitas situações.
O problema é que o louco da planilha acha que todas as situações podem e devem ser planilhadas.

Você conta para o louco da planilha que está lendo um livro de poemas e ele diz: planilha.  Tem rima?  Coloca lá em duas colunas conforme os versos rimem, um em cada linha e depois faça um cruzamento das colunas.
Cruzar sapos com goiabas.  Mais ou menos isso, você pensa.

Mas cuidado!
Não se atreva a contrariar esse tipo de louco. 

É capaz de ele te mandar planilhar os argumentos que vocês estão usando e novamente nascerá uma nova espécie bestial na natureza – agora cruzando premissas, cajus e emoções raivosas – as suas, claro.

E você aí, achando que só porque leu sobre os loucos é até normalzinho, é?

Tem certeza que não pensou em planilhar este texto?
Vogais, consoantes e dígrafos em colunas distintas; papiros, ursos e visconde de sabugosa em outra; louco do saco, de pedra em...

Se fizer várias planilhas, use o vlookup (PROCV) para cruzar as informações.   









sexta-feira, 20 de março de 2015

Papeando, porque hoje é sexta!

Recadinho

Tem muita gente me perguntando por que não consegue comentar no blog.
Dizem que quando finalizam a mensagem, parece que funcionou e depois não aparece nada na tela.
A dica é: não saia logo da página.   
Após clicar no “publicar”, espere um pouco. Observe se é pedido que você confirme que não é um “robô”. 
Para confirmar é simples, mas se não fizer o procedimento, não funciona.
Deixei aberto para qualquer pessoa comentar e não tenho como mudar o pedido de identificação, faz parte do esquema de segurança do blogger.

Se mesmo assim não rolar, me avisem como fizeram agora, por favor.


Miscelânea

I

Quando meu genrinho (o diminutivo é porque ainda são namorados) chega em casa dizendo que tem algo que é a minha cara para me mostrar, tenho muitas reações esquistas.

O estômago revira de aflição por ouvir isso de um rapaz que tanto gosto.
Mas vejam bem...Sou a sogra! então o coração bate mais rápido. A mão formiga e os neurônios ficam em estado de alerta máximo.

Fico doida para ver o que ele acha que tem a minha cara.  Penso numa música nariguda; um texto com olheiras, cabelos lisos escorridos e coisas do tipo.

Peço dicas do que é porque ele tem que tirar o paletó, guardar a mochila, cumprimentar o cachorro que faz festa barulhenta latindo “amo esse cara, amo esse cara!” e demora bastante para me mostrar.
Ele assanha minha curiosidade dizendo: Se me dissessem que é de sua autoria, eu acreditaria.

Aimeudeus!
Isso é bom ou ruim?

Minha filha sempre completa a cena lembrando que quando o pai ficar velhinho irá para um asilo, mas a mãe irá para um hospício de idosos, que ele não se preocupe – não terá que cuidar de uma velhinha doida.

Ele vai mexendo no celular e dizendo que é algo “doido” como eu.
Vou incorporar esse estereótipo e começar a babar no pé. Parece que é consenso aqui em casa.

Já combinei com minha filha que ela procure um hospício que tenha muitas árvores porque quero morar em uma delas, numa casa de madeira, em galho bem alto, que me permita conviver com os narizes verdes balançantes – cheia de oxigênio e paisagem. (ela se comprometeu em achar um assim, quase como quem providencia um último desejo à progenitora moribunda!!).

Para completar o quadro, ela apressa meu genrinho para mostrar logo o que tem para mostrar para que a criança-mãe-empolgada, que vai ganhar um doce no formato de texto ou música, sossegue.

Estou rodeando o rapaz, mas estou quieta.

A última vez que ele veio com essa frase, apresentou um livro que realmente amei e que adoraria ter escrito. É o que me conforta nesta espera, que parece eterna.

Desta vez ele diz que é uma música. Um grupo que faz músicas que eu bem poderia ter escrito as letras.

Todas as pulgas do mundo estão nas minhas orelhas e preciso me livrar delas para colocar o fone de ouvido.

Eu não conhecia, e amei. Gostei muito da proposta do grupo.
Vejam se conhecem e se gostam:

Palitorerapia (Palitoterapia em alguns registros)

Abram o “mostrar mais”  - tem a letra e outras informações.

Assumiria a autoria desta e de todas as outras do álbum “Matéria Estelar”, de Rhaissa Bitttar
Meus destaques são para: “Lamúrias de uma Pera”; “A Lista”; “Uma Pedra”; “Matéria Estelar”, “A Foto”.

“Pa Ri” é de outro álbum e é ótima também. Tem que prestar atenção na letra.

E ele avisa: assinante do Spotify encontra o “Matéria” disponível, tá?!

Meu genrinho é ou não é uma graça?
Se um dia ele brigar com a minha filha e terminar o namoro, me candidato!!

Só preciso me certificar que, no futuro, ele me coloque no hospício com árvores.
“No futuro”, hein, Bruno!

***

II
Leituras

Não costumo comentar, aqui no blog, os livros que leio. 
Às vezes sugiro que leiam este ou aquele livro porque achei interessante.  
Mas, geralmente, não passo disso.
Gosto não se discute.  
O que se discute é uma obra, um autor e seus desdobramentos no painel cultural.
E isso já não posso fazer.
Não sou das Letras, sou apenas uma leitora curiosa, de formação jornalística que corre por fora porque gosta.
E (.)

Na época da faculdade zombávamos de nós mesmos dizendo que jornalistas sabem um pouco de cada coisa e nada profundamente (a menos, claro, que você se especialize, mais tarde, para ser jornalista de algum assunto específico).

Seria, portanto, uma burra ousadia da minha parte fazer qualquer análise literária.

Deixo essas análises para meu amigo do “Palavra de Literatura”, que as faz, de forma gostosa e com muito conhecimento e autoridade - além de apresentar diários de leituras, promover discussões e levantar questões pertinentes.
Já recomendei esse blog para quem gosta de literatura:  http://palavradeliteratura.blogspot.com.br/?view=classic
É enriquecedor.

Tudo isso esclarecido (com ares de justificativa também), farei minhas observações de leitora leiga que não usa a terminologia correta dos literatos, não fala de “eu poético”, “lirismo subjetivo” e afins.



Alguém pode me dizer o que acontece com Haruki Murakami*?
Indicado ao Nobel de literatura em várias oportunidades, esse cara me confunde nos sentimentos por ele.
Não sei se o gosto em tudo que poderia gostar.

Explico:
Todos os livros que li dele** me deram a mesma sensação de estranheza. Um certo mal estar que não sei definir direito.

Quero dizer, sei o que incomoda mas não sei se são recursos usados por ele ou se são características dele.

Murakami é daqueles autores que criam enredos instigantes, que te deixam curiosa e não é dado à “máximas” ou grandes pensamentos. Não fica filosofando a vida, não usa metáforas ou muitas analogias para dizer o que quer. É secão.  
Mas é esticado.
A impressão que tenho é que ele trabalha cada linha do texto para deixar uma estória simples e comum, interessante.  

E é aí que ele se enrola.   Parece que quer mais páginas no livro.
Fornece detalhes desnecessários a todo instante.
E digo “desnecessários” porque quase todos não fazem diferença na composição dos personagens ou do pano de fundo do enredo todo. 
Um detalhe ou outro é fundamental, claro. Mas ele exagera, ao meu ver.
Ele consegue deixar a estória interessante? Sim. Mas não corre suave.

Não sei dizer se ele é prolixo ou se a tradução é infeliz.
O japonês é um idioma que usa muitas palavras para pouco dizer.
Pode ser que a tradutora se enrole e não faça um fluxo de narrativa mais leve porque quer considerar cada palavrinha que ele usa. Talvez desse para fazer de outra forma.
E acho essa questão seríssima porque se a tradução estiver emperrando, estou lendo um Murakami que não existe e sim o que a tradutora entende.  Vai ver é isso.

Ou é proposital esse espalhar muitos detalhes desnecessários?
Quem sabe ele quer soltar pistas falsas para o leitor ficar procurando pelo em ovo.  Ovo de canário.
Não sei.

E para agravar, ainda tem os finais.
Embora eu fique presa nas estórias que ele cria, não houve um só final que eu tivesse gostado nas obras dele.
Ele sempre me decepciona no desfecho.

Como pode alguém tão criativo não achar um final à altura do resto da obra?

Finalizações são complicadas quando se abre muito o leque de proposições, assuntos, personagens; concordo.  Mas nem é o caso.
Parece que Murakami escolhe o mais tolinho possível para fechar tudo.
Ausência.
Vácuo.
É essa a sensação que tenho quando termino um livro dele.

Lembrando que, o que antes chamávamos de vácuo (ausência de máteria) passou a ser preenchido pela percepção da existência da tal matéria escura – ainda indecifrada pelos cientistas -  no universo.
É lá, na matéria escura, que devem estar guardados os finais brilhantes de Murakami. 
Eles devem existir. Não os conheço. Não os vejo.
Apenas infiro que existam.


* Haruki Murakami --> http://pt.wikipedia.org/wiki/Haruki_Murakami

** obras lidas:  
“Minha querida sputnik”; 

“1Q84” (trilogia);

“O incolor Tsukuro Tazaki e seus anos de peregrinação”

e alguns contos:
http://www.newyorker.com/magazine/2014/10/13/scheherazade-3

http://www.newyorker.com/magazine/2014/06/09/yesterday-3


-> próxima obra que lerei: “Kafka à beira mar”
***

terça-feira, 17 de março de 2015

Madame Pobre

(Peripécia de madame pobre para comprar livros)


Madame pobre é a pessoa que está sem trabalhar fora de casa, dispensou a empregada
para ajudar no orçamento doméstico e, portanto, tem que fazer as tarefas da casa.  
Pode fazer os trabalhos no momento que quiser.
O resto do tempo pode ler, escrever ou olhar o dedão do pé e as nuvens.
Para efetuar algum gasto, a madame pobre - que não está trazendo recurso algum para
a família - precisa negociar com o marido.

Por exemplo, se ele vai ao jogo de futebol e você não gosta de futebol (porque não é capaz nem de dizer se a bola foi chutada "com efeito" ou se chutaram para o lado certo), mas ele faz questão da sua companhia, você negocia o valor de ingresso para ser usado em outras coisas e até faz a tal companhia ficando nos arredores do estádio.
Num shopping.
Que tem livraria e cinema.
E a livraria é a Cultura. Além dos seus livros você quer ver se tem uma revista literária para um amigo.  É por sugestão deste amigo que você já sabe quais livros irá comprar hoje.

Você combina, então, de tomar um café com o marido e ir ao cinema e à livraria. Pode gastar o valor do ingresso e tem quase 4h para isso.
O cinema te tomaria 2h do passeio e seria o valor de um livro pequeno. Tinha apenas um filme que te interessava um pouco.
Então você vai para a livraria e deixa para voltar ao cinema dali meia hora e repensar se quer assistir ao filme ou não.

Mas, na livraria o mundo tem outra conotação, você fica em outra dimensão, o tempo obedece os encantos das leituras permitidas em poltronas confortabilíssimas e você lá, abduzida pela imaginação e a dúvida. Mesma obra, edições diferentes. 

Quero em prosa, tem?  A mulher traz uma pilha de livros. Todos em poema.
Não tem o da Cultrix?
Edição da Odisseia, Cosac Nayfi, que tem as fotos é magnífica. 
Quero essa, quero essa! 

A vendadora, acabando com sua empolgação, avisa que é bem mais cara que a outra e que a diferença são as fotos - você confere e começa a ler porque já escolheu outros dois livros e separou.
Aí você perde o horário do cinema e a poltrona confortável porque foi falar com a vendedora e pagar a conta toda.  
Edição mais simples da Odisseia está de bom tamanho para uma madame pobre.

O Café da livraria está lotado.
Você tem que procurar outro lugar para sentar e continuar lendo porque já está fisgado pelo livro que acabou de comprar.
Haruki Murakami que te perdoe, mas você acha que vai começar outro sem terminá-lo, embora não seja seu costume abandonar uma leitura.

Detalhe: você descobre, depois, que deveria ter postado no Instagram (nunca lembra que ele existe) que fazia a tal compra. 
Seu amigo que sugeriu os livros que você está comprando, está postando, naquele mesmo momento, a compra do livro que você recomendou a ele.  Que alegria!

Mas você não sabia e nem pensa nisso porque está envolvida no mundo mitológico onde há ciclopes atuantes e as pessoas nascem de ovos, encolhem-se dentro dos maridos, transam com cisnes,  nascem adultas, e têm poderes e características extraordinários. Momento da história quando passamos da oralidade para a escrita no contar estórias.

O Café do cinema tem balcão para uso de computador e mesas pequenas num ambiente aconchegante.
Você toma muito café, chocolate e água que é para poder continuar lá sentado, lendo. Talvez passe mal depois porque essa mistura de tomação não é das melhores.

Um senhor que usa o computador sorri em cumplicidade - vocês 2 fazem uso do espaço como se esperassem alguém sair do cinema.  Você realmente esperava alguém. Mas a saída era do estádio. Já o senhor, pelo sorriso torto, estava enrolando mesmo.

O shopping borbulha de gente. Todo mundo esverdeado. Jogo do Palmeiras. O estádio é ao lado do shopping. Os torcedores estacionam ou passam no shopping antes de ir ao jogo.

É uma invasão que o shopping gosta, pois traz muitos clientes.   
Clientes verdes.

Quando te perguntam se você torce para algum time, responde que torce para o jogo acabar logo e todo mundo voltar ao normal. Torcedores são seres coloridos e estranhos. Um mundo que você não entende e nem participa.

Mas isso pouco importa porque você está tentando imaginar a árvore genealógica do deuses. Vai entrar num mundo totalmente novo.  Você desiste da genealogia, mas lê, com atenção, boa parte do comentário que o autor desta edição faz para apresentar a obra. Mais ou menos 100 páginas de informações absolutamente envolventes e esclarecedoras. 
Você espera que a obra seja arrebatadora, mas sabe que talvez lhe falte conhecimento para compreendê-la na sua plenitude e que a absorção seja parcial por pura ignorância sua. Talvez você tenha que pedir ajuda e pesquisar bastante para realmente curtir a obra na sua grandeza peculiar. Ótimo!

Está dando o horário do jogo terminar e você para de ler porque está preocupado. 
Como vai apresentar a conta dos livros?  Saiu muito mais que o ingresso do jogo.

Ok. Você fará mais uma negociação: dirá a ele que não fará as unhas esta semana e começa a cruzar os dedos para que tudo dê certo e para esconder as cutículas que já crescem animadas e oferecidas.

Seu marido sai do jogo mais verde do que quando entrou. 
Agora é o verde da fome e você aproveita a aflição do estômago e já conta tudo.

Ele mal presta atenção. Quer um lugar para jantar. E depois do jantar está felizão porque o time ganhou e está de barriguinha cheia!
Ufa!

Já no carro, no caminho de volta para casa, ele pergunta: mas precisava comprar os 3 livros? Você não vai ler um de cada vez?
Você está distraído com um dos livros; não responde e aumenta o rádio. 
Está tocando "sweet dreams are made of this...Who I'am to desagree..."

Ele jamais vai entender que você pre-ci-sa-va dos 3.



domingo, 15 de março de 2015

Em homenagem

14 de março é a data de nascimento de Castro Alves, por isso a escolha para ser o dia da poesia.
Há poesia em muita coisa, mas escolhi alguns poemas, de diversos autores, para comemorarmos.

Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Paulo Leminski
*** 


Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Manoel de Barros


Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros
***
A canoa fantástica
PELAS SOMBRAS temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante
De palmeira, que s'escoa...
No dorso da correnteza,
Como boia esta canoa! ...

Mas não branqueja-lhe a velar
N'água o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa! ...

Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa! ...
Castro Alves
***

A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

João Cabral de Melo Neto

Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever:

joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.


Ora, nesse catar feijão entra um risco:

o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco

João Cabral de Melo Neto

***

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manoel Bandeira

Antes do nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.