quarta-feira, 30 de março de 2016

Contações

Cabide


Qual mãe nunca foi um cabide?
Pode não ter pensando no assunto, mas teve a mesma função, além daquelas muitas outras que as progenitoras costumam ter, como mamadeira gigante e guardiã.

Esses dias eu estava esperando um ônibus e tive a oportunidade de ver mais uma mãe-cabide!
A mulher tinha um filho no braço esquerdo e trocentas coisas penduradas no braço direito.

Meu conforto em ver que não era só eu que já tinha vivido essa experiência não amenizava em nada a dificuldade dela em segurar criança, sacolas e ainda subir e se segurar dentro do ônibus. 
E ela pegou outra linha, não deu nem para oferecer ajuda.
Aí lembrei um episódio que me ocorreu quando eu ainda era um cabidão.

Fui buscar, de ônibus, meu filho mais velho na escola. Carro no mecânico.   Saio eu carregando a sacola com os apetrechos da filha mais nova que ainda era de colo, mais a própria neném.

Silvana Moretti


Não foi muito fácil a ida, mas equilibrei tudo, numa boa, dentro do ônibus.   E o pessoal até que é bem solidário – o motorista não dá um arrancão de uma vez.  Ele puxa bem mais a primeira marcha e o único mau que causa é uma certa falta de fôlego em mim, que na verdade é falta de fôlego do motor, com aquele ronco horrível.  Mas tudo bem.   Pelo menos a gente não cai.  Só fica meio asfixiada.

Mas eu esqueci de um detalhe, ou não imaginei, digamos, quantos apetrechos teria que trazer na volta.


Meu filho costumava levar mochila e lancheira na escola.  Ou seja, seriam mais dois itens para eu carregar, porque criança carrega bem bonitinha suas coisas - com pose e tudo - só até a mãe aparecer, claro.   Depois entrega tudo que tem à mão, como se esse ato estivesse programado em seu DNA.
E havia um agravante naquele dia: aniversário de coleguinha e seus balões coloridos.  2 balões!! 
Meu filho, carinhoso, havia pegado um para ele e outro para levar para irmã.
Besteira!!   Era tudo para ele mesmo, porque ela não tinha idade para brincar com bexigas ou qualquer outra coisa.  

Lá vou eu andando pelas calçadas de Santo Amaro, carregando a menina, a mochila, minha bolsa, a sacola da neném e 2 enormes balões!! Um cabide ambulante.
Vou andando e pensando que preciso me livrar dos balões de qualquer jeito.
Como vou entrar no ônibus com tudo isso e ainda ajudar meu filho a ficar em pé?

Tento um papo com o menino, dizendo que em casa tem um monte de balões para encher e que poderíamos brincar à tarde toda com eles, mas que aqueles, nós não poderíamos levar... “não dá para mamãe carregar no ônibus”.
Claro que um pirralho de 3 anos não iria entender exatamente a história toda, ficaria confuso e eu estaria com o problema resolvido, se me livrasse deles.

Ledo engano.  Ele simplesmente argumentou que sabia que tinha bexigas em casa, mas que aquelas eram especiais porque havia lutado muito para consegui-las.
Lutado?  Como?
Tive que empurrar o Pedro e o Thiago que queriam tudo para eles!
Ai, caramba!
Bexigas.   Balões cheios de ar com conotação de espólio de guerra era demais para mim!
Perguntei se ele havia comido o fígado dos amiguinhos também, para adquirir a força deles – não era assim que se fazia com os inimigos, na Antiguidade?   
Mas isso ele não entendeu e achei melhor parar com o papo ou seria chamada na escola por mordidas descontroladas.

Chego no ponto de ônibus muito mais cansada que o normal. E não era pelo carregar de tudo.   Era pura aflição.
Penso em acender um cigarro e encostar nos balões. Assim, sem querer... Esbarrão, vento, pedidos de desculpa, choro por alguns minutos e pronto: resolvido.

Mas acender cigarro com criança no colo é assassinato, mesmo porque faltava mão para qualquer coisa que tivesse que ser feita.
Fico ali enrolando para achar uma solução.  Os ônibus que me servem passam, mas eu nem tento subir.

Aí tenho uma ideia que penso ser brilhante e, de repente, solto os balões sem mais nem menos, como se eles tivessem escapado.

Meu filho boquiaberto, atônito e espantado olhando os balões que, estranhamente voam para frente, em direção à rua...
Ufa! 
Estranho os balões não subirem, seguem em frente, para o meio da rua... Muito estranho.  Mas o que importa é que...  Estou livre deles!  Nenhum pio ou choro!  Só espanto do menino.

Tô livre, tô livre!

Mas... O senhorzinho à minha frente - que também aguardava um ônibus - ao ver os balões, sai correndo para o meio da rua e os agarra, como se estivesse agarrando a própria vida e traz os dois balões de volta para mim!

Sorriso banguela, calça surrada, chapéu de palha e pensando que fizera o maior favor do mundo para uma mãe-cabide, fala: tá aqui, dona... E faz carinho na cabeça de meu filho, comentando...  “Nessa fase de criança pequenina nóis carrega muitcha cousa.  A gente precisa de ajuda!”

Tenho certeza que aquele homem conhece o conceito profundíssimo de mãe-cabide!!    Deve ter sido um pai-cabide.

Tive que esperar o senhorzinho tomar o ônibus dele, primeiro, para depois...
Bem... Soltei novamente os balões e finalmente peguei o ônibus carregando só o restante da tralha.

Ah! A orelha do mecânico ficará boa, disseram os médicos.
Minhas mordidas não estavam contaminadas!


quarta-feira, 23 de março de 2016


E eu não podia deixar de registrar...




Shitake




Começava a ter dúvidas se comera shitake ou um cogumelo alucinógeno qualquer na noite anterior.

As nuvens haviam amanhecido com as mãos abanando. O vento, mais misterioso que o normal, insistia em não contar seus segredos. A mulher no ponto de ônibus cheirava a copo plástico mal lavado de liquidificador antigo. O urubu fazia inveja a ela, plainando. Seu cachorro mostrara a plaquinha de nãoacreditoquevaimeabandonaremplenosábado! 

Tudo estranhamente animado e com ares de festa. Deve ser o shitake misturado à expectativa.

Dia especial. Tudo vale para o encontro com amigos marcado na livraria Cultura da av. Paulista.

Alegria, alegria, minha gente! Cada pedra da calçada é sua cúmplice na empreitada e ajuda no passo, alavancando os animados calcanhares.

Shitake dá sempre essa sensação? Pretende comê-los todos os dias dali para frente.

O ônibus tem cara de que carrega baratas de tamanho mini como passageiros clandestinos. Todos confiando que o motorista de unhas compridas e sujas, que cumprimenta cada um que pisa no segundo degrau, os levará ao destino, em segurança. Sorriso matinal carrega carimbo de noite bem ou mal dormida.

E vamo’quevamo! Detesta essa frase, mas hoje até ela cabe.

Para o encontro, leva na bolsa o cartão de natal que comprara no final do ano anterior. Nunca o enviara porque às vésperas das festas não achou o endereço do destinatário.  Guardou tão bem guardadinho o bendito envelope com o endereço que só o encontrou no carnaval. Já não faz sentido. Mas leva para mostrar que se lembrou dele na ocasião.

Bobagem. Não fará sentido para o amigo que deixará de ser virtual. Será flesh e osso!

Precisa lembrar que a barba foi tirada e deve procurar por alguém de rosto sem pelos. 

Um livro, um rosto. Rosto com barba.
Não.
Rosto feminino.
Não.
Livros.
Rosto com barba.
Rosto sem barba.
Livro.
Rosto semibarbado interessado em livro.

Achei!!!!  Grita no coração, mas hesita na ação! Vai que não é o amigo virtual e ela abraça um desconhecido qualquer despejando o carinho que guardou no baldinho do coração!

Shitake mexe até com as pupilas?
Mas não altera o abraço, o reconhecimento, a confirmação e a gostosura do encontro.

Café, conversa rápida. Um tatear a identificação, a afinidade que se presumia sabida e comum aos três, agora confirmada.

Ela, na verdade, é uma intrusa que ficará uns 15 minutinhos para falar um oi e olhar no olhinho do amigo querido que visita a cidade no final de semana.  Um encaixe na agenda.
De embrulho, ganha a amiga do encontro do amigo.

Pouco tempo, muito a ouvir e a falar. Uma delícia de encontro.
Não poderia ser diferente: ele é um gentleman. A amiga dele, a delicadeza em pessoa.

Sente que dentro dela todas as falas são em capsLk, todos os gestos em slow motion. Sabe que é por aí que a agulha da vida vai alinhavando uma colcha mágica de contatos e amizades.

Mas já é hora de ir. Tem compromisso. 

queroficar explícito numa perna indo e outra fincada no chão querendo não se despedir chega a ser infantil, mas é tão verdadeiro!

E tchau!

Ela não sabia, mas saiu como coelho da Alice, meio Amèlie Poulain, meio passarinho novinho na palma da mão... Que delícia!

Ah! E acabou por esquecer-se de entregar o cartão que levara.

É... O encontro foi especial mesmo. Não adianta botar a culpa nos cogumelos de ontem à noite, pensa já no metrô.





Obrigada Ramon (No Insta: Palavra de Literatura e http://palavradeliteratura.blogspot.com.br/) e Thais (Literaturanews – no Insta) pelo encontro tão gostoso. 
Que possamos nos reunir mais vezes!