Então! Nem sei como focar o fato. Uma volta tumultuada para casa, numa noite infeliz? Poderia ser sobre respeitar e sentir-se respeitado.
Respeito é coisa simples; ou pelo menos deveria ser. Mas às vezes tudo se complica, do nada.
Empatia Motora
E lá
fui eu sentar ao lado de um senhorzinho desses que usam chapéu em plena São
Paulo, século XXI, num ônibus municipal.
Ok.
Diversidade é muito saudável.
Uma
pessoa que usa chapéu pode ser precavida, friorenta, fashion, caipira ou qualquer outra coisa. Tanto faz.
Mas
eu devia ter desconfiado do detalhe Não
ousei julgar o que aquele senhor era porque isso não importava.
Tudo
que eu queria era desenrolar meu fone de ouvido, conectá-lo ao celular e voltar
para casa sentada num ônibus, ouvindo minhas músicas prediletas enquanto lia
um livro tirado, há poucos minutos, da biblioteca Mário de Andrade.
Escolhi
sentar ao lado daquele senhor porque ele era pequeno – estatura pequena. Os bancos de ônibus não são muito
espaçosos. Tem que ser um pequeno
sentado com um maiorzinho.
Ou 2
pequenos. 2 grandinhos nem pensar – alguém passará a viagem inteira espremido.
E a triagem de onde sentar e com quem é quase automática na cabeça da gente.
Assim
que sentei e tirei o fone de ouvido da bolsa esse senhor bocejou.
Bocejou
bem gostoso. Alongado, gemido. Só faltou o espreguiçar. A falta de espaço o fez desistir da ideia,
provavelmente.
Achei
aquele momento delicioso. Fechava o dia.
Caricaturava o final de um dia de muito trabalho. Tarefas feitas, trabalho finalizado.
Sorri
por dentro e continuei desenrolado o maldito fio do fone de ouvido.
Uma
praga esses fios. Você pode enrolar direitinho, colocar um prendedor e outros
apetrechos para deixá-los organizados mas, assim que os soltar, eles se embolarão
antes que você consiga colocá-los nos ouvidos.
O saci deve morar dentro da minha bolsa e sua diversão predileta deve
ser trançar meu fio do fone de ouvido.
Com a
demora, ouço mais um bocejo gostoso do senhor.
E,
claro, acabo bocejando também.
Estou
quase terminando de desenrolar o fio e o senhor boceja de novo. Desta vez com
um gemido muito mais alto e alongado. O
que me faz pensar que ele está relaxando.
Mais
uma vez eu bocejo também.
Ele
boceja.
Eu
bocejo e amaldiçoo o fio enrolado.
Ele
boceja.
Eu
bocejo e fico com os olhos lacrimejando.
Bocejos
são “contagiantes”. Impossível não bocejar ao lado de alguém que está
bocejando.
Enfim,
eu consigo desenrolar o fio e coloco um fone num dos ouvidos, mas ainda não
liguei o celular.
E o
senhor boceja de novo!
Eu
também.
E, de
repente, o senhorzinho segura meu braço e fala: a senhoratámiimitando?
O
que?
É! A senhora me arrespeite que sôhomidibem! E a senhora numpodemiarremedá dessijeito.
Mas
eu não tô imitando o senhor. Tô imitando
o que?
A
senhora fica abrindo a boca quando eu abro também, é? Tá pensando quieusobobo?!Devo ter idade para ser seupainho. Paradimiimitar.
Meu
painho? Santo Deus!!
Num
zilhão de segundo passou um monte de
coisas na minha cabeça.
Slow motion. Como vou explicar para esse
senhor que bocejos são manifestações incontroláveis – quase como o movimento
peristáltico do intestino dele?
Talvez
eu devesse tentar. Mas acho que ele nem sabe que tem intestinos. Tem tripas.
E ele estava muito exaltado, segurando no meu braço, perguntando novamente se
estou querendo desrespeitá-lo. E eu me sentindo com cara de paisagem
desbotada, afirmando que não estava imitando ninguém.
Nessas
alturas, com a gritaria do homem, todos os passageiros do ônibus estavam me
olhando e se perguntavam o que estava acontecendo.
Ainda
estávamos parados, no terminal de ônibus.
Eu
deveria ter levantado e tentado explicar que os cientistas já estudaram e
pesquisaram o porquê dessa reação humana tão comum de se sentir compelido a
bocejar sempre que alguém por perto boceja.
Deveria
tentar explicar que os estudiosos não têm certeza de nada, mas trabalham com 3
suposições: uma é a de que os humanos faziam esse som gutural e abriam bastante
a boca para afugentar animais perigosos e inimigos desde a época em que
resolveram se agrupar e morar em cavernas – quase como o urrar de alguns
animais ou o bater no peito que os macacos gostam de batucar quando se sentem
ameaçados em seus territórios. Todos do
grupo fariam esta ação ao mesmo tempo.
Acho
que o senhorzinho até se sentiria muito macho e chefe de alguma tribo se eu
apresentasse essa hipótese. Passaria a
bocejar com mais grunhidos e firmeza.
Poderia
segurar a mão dele e falar carinhosamente que ele estava enganado e sorrir.
Talvez ele acreditasse.
Mas
não: nenhuma explicação. Travei. E ele continua a matracar e clamar por
respeito.
A
segunda suposição que eu também poderia tentar contar para ele é que, segundo
os cientistas, ele estava bocejando para baixar sua temperatura cerebral – não
se sabe por que, mas a temperatura da cabeça da gente abaixa com bocejos. A
entrada de ar, o esticar dos músculos. Não se sabe direito. Mas suspeitam de um
mecanismo de controle de temperatura do organismo.
Ou,
eu poderia falar simplesmente que bocejamos para evitar o sono, ou quando se
está com sono – é o que a maioria das pessoas pensa - terceira suposição.
Empatia
motora, meu senhor. É isso que se chama e não imitação. Os animais são dados a
essas coisas.
Poderia
falar tudo isso, ou alguma coisa disso tudo, numa tentativa de me defender.
Mas
não falei. Não falei nada. Fiquei
atordoada com a braveza do homem. Simplesmente levantei e saí rápido do ônibus
porque o senhor esbravejava com toda força que seus pulmões permitiam. E que pulmões!!! Como ele provavelmente diria: fiquei avexada!
Claro
que, com o susto, não bocejei nenhuma vez mais.
Cheguei
em casa em estado de alerta máximo. Olhos arregalados e boca ainda travada. Não
contei para ninguém o episódio.
Mas
lembrei do senhorzinho de chapéu quando estava quase dormindo e bocejei
novamente.
Espero
que ninguém tenha deslocado o queixo com os bocejos durante a leitura deste
texto, tá?
Juro
que não era a intenção!!
Marcela, seu livro de crônicas poderá chamar-se "Eu só queria voltar em paz para casa". Já notou quanta história lhe ocorre nesse retorno? Sobre a representação escrita da fala do senhorzinho, vou mandar-lhe por e-mail um trecho de livro que comentei recentemente no Palavra de Literatura.
ResponderExcluirahahaha É verdade.
ExcluirAguardo seu comentário sobre a fala do senhorzinho.
Muitogradicida