domingo, 8 de março de 2015

Cada uma...

Então! Nem sei como focar o fato. Uma volta tumultuada para casa, numa noite infeliz? Poderia ser sobre respeitar e sentir-se respeitado. 
Respeito é coisa simples; ou pelo menos deveria ser. Mas às vezes tudo se complica, do nada.

Empatia Motora


E lá fui eu sentar ao lado de um senhorzinho desses que usam chapéu em plena São Paulo, século XXI, num ônibus municipal.
Ok. Diversidade é muito saudável.
Uma pessoa que usa chapéu pode ser precavida, friorenta, fashion, caipira ou qualquer outra coisa. Tanto faz.
Mas eu devia ter desconfiado do detalhe  Não ousei julgar o que aquele senhor era porque isso não importava. 

Tudo que eu queria era desenrolar meu fone de ouvido, conectá-lo ao celular e voltar para casa sentada num ônibus, ouvindo minhas músicas prediletas enquanto lia um livro tirado, há poucos minutos, da biblioteca Mário de Andrade.

Escolhi sentar ao lado daquele senhor porque ele era pequeno – estatura pequena.  Os bancos de ônibus não são muito espaçosos.  Tem que ser um pequeno sentado com um maiorzinho. 
Ou 2 pequenos. 2 grandinhos nem pensar – alguém passará a viagem inteira espremido. E a triagem de onde sentar e com quem é quase automática na cabeça da gente.

Assim que sentei e tirei o fone de ouvido da bolsa esse senhor bocejou.
Bocejou bem gostoso.  Alongado, gemido.  Só faltou o espreguiçar.  A falta de espaço o fez desistir da ideia, provavelmente.
Achei aquele momento delicioso. Fechava o dia.  Caricaturava o final de um dia de muito trabalho. Tarefas feitas,  trabalho finalizado.

Sorri por dentro e continuei desenrolado o maldito fio do fone de ouvido.
Uma praga esses fios. Você pode enrolar direitinho, colocar um prendedor e outros apetrechos para deixá-los organizados mas, assim que os soltar, eles se embolarão antes que você consiga colocá-los nos ouvidos.  O saci deve morar dentro da minha bolsa e sua diversão predileta deve ser trançar meu fio do fone de ouvido.

Com a demora, ouço mais um bocejo gostoso do senhor.
E, claro, acabo bocejando também.

Estou quase terminando de desenrolar o fio e o senhor boceja de novo. Desta vez com um gemido muito mais alto e alongado.  O que me faz pensar que ele está relaxando.
Mais uma vez eu bocejo também.

Ele boceja.
Eu bocejo e amaldiçoo o fio enrolado.

Ele boceja.
Eu bocejo e fico com os olhos lacrimejando.

Bocejos são “contagiantes”. Impossível não bocejar ao lado de alguém que está bocejando.
Enfim, eu consigo desenrolar o fio e coloco um fone num dos ouvidos, mas ainda não liguei o celular.

E o senhor boceja de novo! 
Eu também. 

E, de repente, o senhorzinho segura meu braço e fala: a senhoratámiimitando?

O que?

É!  A senhora me arrespeite que sôhomidibem! E a senhora numpodemiarremedá dessijeito.
Mas eu não tô imitando o senhor.  Tô imitando o que?
A senhora fica abrindo a boca quando eu abro também, é?  Tá pensando quieusobobo?!Devo ter idade para ser seupainho. Paradimiimitar.

Meu painho?  Santo Deus!!

Num zilhão de segundo passou um monte de coisas na minha cabeça.
Slow motion. Como vou explicar para esse senhor que bocejos são manifestações incontroláveis – quase como o movimento peristáltico do intestino dele?
Talvez eu devesse tentar. Mas acho que ele nem sabe que tem intestinos. Tem tripas.

E ele estava muito exaltado, segurando no meu braço, perguntando novamente se estou querendo desrespeitá-lo. E eu me sentindo com cara de paisagem desbotada, afirmando que não estava imitando ninguém.

Nessas alturas, com a gritaria do homem, todos os passageiros do ônibus estavam me olhando e se perguntavam o que estava acontecendo.
Ainda estávamos parados, no terminal de ônibus.

Eu deveria ter levantado e tentado explicar que os cientistas já estudaram e pesquisaram o porquê dessa reação humana tão comum de se sentir compelido a bocejar sempre que alguém por perto boceja. 

Deveria tentar explicar que os estudiosos não têm certeza de nada, mas trabalham com 3 suposições: uma é a de que os humanos faziam esse som gutural e abriam bastante a boca para afugentar animais perigosos e inimigos desde a época em que resolveram se agrupar e morar em cavernas – quase como o urrar de alguns animais ou o bater no peito que os macacos gostam de batucar quando se sentem ameaçados em seus territórios.  Todos do grupo fariam esta ação ao mesmo tempo.

Acho que o senhorzinho até se sentiria muito macho e chefe de alguma tribo se eu apresentasse essa hipótese.  Passaria a bocejar com mais grunhidos e firmeza.

Poderia segurar a mão dele e falar carinhosamente que ele estava enganado e sorrir. Talvez ele acreditasse.

Mas não: nenhuma explicação. Travei. E ele continua a matracar e clamar por respeito.

A segunda suposição que eu também poderia tentar contar para ele é que, segundo os cientistas, ele estava bocejando para baixar sua temperatura cerebral – não se sabe por que, mas a temperatura da cabeça da gente abaixa com bocejos. A entrada de ar, o esticar dos músculos. Não se sabe direito. Mas suspeitam de um mecanismo de controle de temperatura do organismo.

Ou, eu poderia falar simplesmente que bocejamos para evitar o sono, ou quando se está com sono – é o que a maioria das pessoas pensa - terceira suposição.

Empatia motora, meu senhor. É isso que se chama e não imitação. Os animais são dados a essas coisas.

Poderia falar tudo isso, ou alguma coisa disso tudo, numa tentativa de me defender.
Mas não falei. Não falei nada.  Fiquei atordoada com a braveza do homem. Simplesmente levantei e saí rápido do ônibus porque o senhor esbravejava com toda força que seus pulmões permitiam. E que pulmões!!! Como ele provavelmente diria: fiquei avexada!

Claro que, com o susto, não bocejei nenhuma vez mais.

Cheguei em casa em estado de alerta máximo. Olhos arregalados e boca ainda travada. Não contei para ninguém o episódio.
Mas lembrei do senhorzinho de chapéu quando estava quase dormindo e bocejei novamente.  

Espero que ninguém tenha deslocado o queixo com os bocejos durante a leitura deste texto, tá?

Juro que não era a intenção!!

2 comentários:

  1. Marcela, seu livro de crônicas poderá chamar-se "Eu só queria voltar em paz para casa". Já notou quanta história lhe ocorre nesse retorno? Sobre a representação escrita da fala do senhorzinho, vou mandar-lhe por e-mail um trecho de livro que comentei recentemente no Palavra de Literatura.

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    1. ahahaha É verdade.
      Aguardo seu comentário sobre a fala do senhorzinho.
      Muitogradicida

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