sábado, 31 de janeiro de 2015

Filas



Detesto filas.
Aliás, não conheço alguém que goste.


Além de nos deixar impotentes na espera, fazem a gente pensar na morte da bezerra, ouvir as conversas ao redor, lembrar que temos pés e circulação sanguínea, tatear a vida em pensamentos soltos e embaralhados até a gente parar de dar voltas em volta da lâmpada e constatar a ridícula situação em que está.
Um devaneio que termina no fim da fila.

Para agravar a situação, como um enfeite de mal gosto numa cena dantesca, reparem nos milhares de sons que invadem seu cérebro, do nada, sem pedir licença alguma enquanto se está numa fila.
Apitos, assovios, músicas de todos os estilos e gostos compõem os alertas e toques de celulares, joguinhos eletrônicos, bips, mensagens e afins.


E tem sempre o distraído com o celular morrendo de esgoelar o toque infernal:  “Papai! Me atende... Papai! Me atende!... Papai!  Me atende, PORRA!” num crescer de volume de dar calafrios na Gloria Kalil.  
Mas como papai está tagarelando com alguém que ele acabou de conhecer na fila – estão reclamando da fila, claro! – então o papai-porra não ouve o seu próprio celular e fica olhando para os lados, incomodado com o som que pensa ser do aparelho de qualquer outra pessoa, menos o dele.


Chega a comentar com o desconhecido – agora quase amigo íntimo – que algum bobo está com o telefone tocando feito louco.
O desconhecido sorri amarelo, verifica todos os apetrechos eletrônicos que está carregando para se certificar de que não é nada dele e volta a prestar atenção na conversa.

O celular para de chamar o papai distraído. Ninguém por perto atendeu celular algum, então parece que o filhinho gritão desistiu. 
Deve estar ligando no celular da mãe, cujo toque deve ser “Mãe! me atende... Mãe, me atende, vai!  Mãe, me atende porque já tentei o PORRA do papai e ele não atendeu!!”  

Posso imaginar a cara de apavorada da mãe naqueles zilhézimos de segundos, tentando entender o que está ocorrendo, enquanto procura o celular na bolsa gigantesca – é o meu? Papai não atendeu? É meu filho! Que será que aconteceu?

Algum dia ainda veremos manchetes do tipo “mãe recebe ligação em celular e morre”.  No corpo da matéria a simples explicação de ela ter assustado com o toque de seu próprio celular e infartado.

E claro, a fila não anda.

Os jetsons – aquele desenho animado que mostra o dia-a-dia de uma família do futuro – tinha resolvido o problema de espera em filas: todos sentados em banquinhos que andavam conforme o lugar seguinte ia vagando. 
Percebem os detalhes?  bancos; sentados. São os bancos que andam.
Cadê? Já não estamos no futuro?
Não adianta pensar que se tivesse escolhido a fila ao lado teria sido melhor. É ilusão. 
A que você escolher será sempre a mais lerda. Se você trocar porque a outra está andando, com certeza ela também vai empacar.
Natural.  A grama do vizinho sempre parece mais verde, mas é igualzinha a sua.
A fila também.

O tal celular do pai bocó começou a tocar novamente.  Todo mundo olha para o lado de onde vem o som, mas agora o pai já está embalado numa conversa de rodinha – várias pessoas participam de uma tagarelice animada. E o PORRA do pai não atende o diacho do telefone.

Talvez alguém devesse avisá-lo sobre seu celular, mas parece que há um certo sadismo no ar. Talvez indiferença seja a palavra mais adequada.
Cabecinhas pensando “cada um tem o filho/pai que merece”.

Mas o toque do celular é opcional, né gente?! E o volume dele também!

Estou quase lá. A fila andou um pouco. Atendimento demorado, mas parece simpático.

Falta só mais um pouco para eu sair do circo dos horrores – agora moderno e informatizado, quem diria!

Alguém resolveu avisar o infeliz do pai sobre as chamadas e ele está falando ao telefone... Ligou? 5 vezes? Não!! Deixa eu ver.  Ah, foi mesmo.  Ué? Será que está no silencioso?  É?    Fala, filho! Que foi?!!

Os balõezinhos de comentários acima das cabeças das pessoas têm aqueles símbolos impronunciáveis.  Então deixa pra lá.
 
Chegou minha vez de ser atendida!
Mas sabe? 
Já não lembro mais o que fui fazer ali.
Peço para a atendente me dar um tempo para lembrar qual era o meu assunto.  Mas a careta dela me provoca um impulso incontrolável e eu digo que fui lá reclamar da fila.  

A careta dela piora e eu explico que só estou ganhando um tempo para lembrar de

verdade, porque depois de quase uma hora, em pé, vendo aquele mundo doido desfilar na minha frente, esqueci o que fui fazer. 
A atendente parece uma caricatura da estranheza, personificada.

Ah!  Lembrei!  Você pode me ajudar a configurar o toque do meu celular? – não está tocando, só vibrando. Acho que está com defeito.
Será?







quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Seção: E sem os remédios diários o texto sai assim!

Lendo sobre o ebola e a possível pandemia:



Deus permita


Deus permita que eu não morra por epidemia de doença alguma!

Não pela doença que estamos todos sujeitos – com ou sem epidemia.
É que não quero congestionamento na porta do céu.


Triagem, confirmação, encaminhamento. Muita gente chegando junto. Caos.
Fila interminável e, na minha vez, São Pedro de prancheta na mão...

 --Não, São Pedro.  Olha direito aí. 
Sou a Marcela. Mar-ce-la.  Com um éle só.    A casada com o japonês, que tem uma filha japonesa e um filho misturado. A tagarela.

É falo muito. Gosto de conversar.

Lembra?  A nariguda que não tem memória para nada mas que se anima até com borboletas ao vento.  
Lembrou?

Aliás, aqui em cima precisamos de memória?  Quero dizer, fica tudo zerado?  Aquela contabilidade maluca de pecados e boas ações acabaram ou continua contando?
Aqui sou pura e novinha em folha? Nariz modelito arrebitado?

São Pedro continua procurando meu nome.

E essa fila, hein?  Muito atrasada a logística daqui. Tem que melhorar, São Pedro! Tem que melhorar!! 
E essa prancheta??  Que que é isso. Coisa mais antiga!!  Faz no celular. Tem uns aplicativos ótimos! Muito práticos!      
O lance da telepatia é legal.  Mas acho que combina mais com ETs.  Fica esquisito por aqui.  Só eu falo e o senhor só me olha...

Isso! Achou?
Viva!!!!
Ooops, desculpa. Essa palavra não cai bem por aqui, entendi.  

Isso mesmo. Essa sou eu!!

Como não era para estar aqui? 
Tá a maior baderna lá embaixo, todo mundo morrendo daquela doença horrorosa.  Não tive escolha. Algum abestalhado me passou a maledeta.

Voltar?
Ah! Só faltava!  Justo eu que nunca acreditei em vai e volta!! 
Sem essa de consertar o que fiz de errado porque ninguém me passou o gabarito certo ou qualquer orientação!


Dica? Que dica?

Tá bom.  Acredito no espírito santo e tal mas posso não ter ouvido o coitado...Cidade grande, barulhenta, muita distração, correria...

Mas São Pedro, isso não é justo!!  
Primeiro eu não pude escolher se queria vir e agora não posso escolher “ficar”? 
Parece simpático aqui. Portões grandes e altos. Tudo clarinho. 
Se eu não morrer de tédio com a calmaria tá bom!!

Ah é!! Já tô morta.  Mas não parece.  Ainda não caiu a ficha. Desculpa.

Tá bom!  Entendi.  Tá muito cheio de gente.  Melhor chegar em outra ocasião.
Ok.
Posso escolher como quero voltar ou não rola opção?

O que?  Vírus?
Mas vida de vírus é tão curta, São Pedro.   E todo mundo querendo matar o coitado.
Não dá pra voltar de outra coisa? 

Como assim?
Que se dane a demanda da epidemia!!

Caroço?
Rambutã
Parece legal! 
Alguém planta, a gente quase morre e nasce de novo.

Posso escolher a fruta?

Ah, não!!!   Rambutã, São Pedro?

Como assim combina com meus cabelos...?






quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Seção: Reflexões

Hoje é dia mundial da religião e dia nacional de combate a intolerância religiosa.



Liberdade



Confundem liberdade com direito a.
Liberdade é poder escolher.
Direito a fazer alguma coisa é poder ou não executar a ação que você teve o direito de pensar em fazer.

Liberdade tem limite sim. E termina no direito do outro.

Você tem liberdade de andar por aí, mas não pode pisar na cabeça de alguém.

Você tem liberdade de achar alguém horroroso, e tem direito de falar isso por aí.  Mas lembre-se: sua opinião é problema seu. Posso não querer saber nem ouvir.

Você tem liberdade para fazer barulho, mas não pode incomodar ninguém.

Você tem liberdade de escrever, desenhar e pensar o que quiser, e até tem o direito de divulgar qualquer coisa – Mas haverá consequências legais e morais.

Onde é o ponto?
Entre a liberdade e o direito há o respeito.

Respeito é coisinha difícil de delinear: deixar para lá? Segurar-se para não criar encrencas, não ofender? Reconhecer que se fizessem o mesmo para você talvez você não gostasse?
Sim.
Respeito é tudo isso e muito mais.

Respeito não é ser submisso à opinião do outro, nem concordar com ela. Muito menos ter medo de reagir.

Alguns dicionários dão submissão, obediência, medo e temor como significado da palavra respeito porque para muitos o respeito implica nisso tudo por excesso de reverência ao respeitado. O dicionário tem que colocar todas as possibilidades, claro.

Mas na sua origem latina, respeito significava olhar novamente para algo. Ou seja, algo que deveria ser olhado 2 vezes, que merecia atenção e consideração. Implicando em cuidado com o objeto observado, levando a mais uma análise antes de qualquer conclusão, ação ou julgamento.

Pense um pouco e vai descobrir muito sobre respeito.

Porque vejamos algumas situações:

se seu filho sair desenhando um negro narigudo na escola e sair com o papel abanando no meio da sala de aula, esbravejando sobre  “preto narigudo”, será repreendido pela professora que vai ensinar a ele que não se deve brincar com as características físicas de uma pessoa; que foi papai do céu que fez a pessoa assim e então ele deve respeitar o jeitão do outro.

O menino vai se perder na palavra respeito, provavelmente indefinida para ele, mas vai prestar atenção ao fato do papai do céu ter feito alguém daquele jeito.
No mínimo vai achar papai do céu um cara estranho que também tem lápis de cor.  Por que pintou um e não outro? Vai aprender a não dar atenção a certas características das pessoas e sim às pessoas e suas ações e pensamentos.  O conceito de respeito começará a existir e fazer sentindo aos poucos para o pequeno.

Se seu filho der um socão no coleguinha de escola que lhe mordeu o braço, a professora vai repreender os dois.
Por maior ofensa que seja levar a tal mordida, será ensinado aos dois que as mãos servem para coisas bem melhores e os dentes devem morder comidinhas. (mais tarde o garoto vai aprender que com os dentes abrimos tampas de remédios, rasgamos embalagens – sem raivas, só um recurso...E só mais tarde, tá?!!)

Nada justifica agressão.
Muito menos matar quem te ofende.
Isso é orgulho – tão detestável quanto a invasão moral e física - falta de respeito.

Por mais ofensiva que tenha sido a ação em sua direção, matar o ofensor não deve nunca, jamais, ser a opção de solução.

Mas cuidado com sua ação. Ela não pode invadir o direito e a liberdade  do outro ser em nenhum aspecto.

Portanto, não sejamos hipócritas!!!
Liberdade tem limites, sim. 

Ensinamos isso às crianças e depois, adultos, não praticamos numa atitude bem sem vergonha de relaxamento e descuido.

Sejamos coerentes.  Entendemos uma coisa bem depurada e depois praticamos outra, mais grosseira, reativa, sem arestas, quase animal irracional.

E para justificar, trocamos o nome das características:  orgulho por ofensa, direito por liberdade, respeito com direito e liberdade.
Uma maçaroca.

Querem ver como ensinamos uma coisa e praticamos outra?

Lembro que uma vez, num parquinho de areia fora do Brasil, meu sobrinho não queria dividir um brinquedo que era seu com um amiguinho.
Eu e a mãe do tal amiguinho – na verdade não se conheciam, apenas estavam brincando no mesmo parque público – assistindo a cena.
O menino insistia em pegar o brinquedo do meu sobrinho que começou a ficar irritado pois estava brincando com o apetrecho – era um balde de plástico.

A mãe desse menino ficou o tempo todo falando: let’s share para o meu sobrinho, como quem está querendo ensinar que tudo deve ser dividido e assim criariam uma amizade, um vínculo.
Ela dizia: let’s share. He’s your friend.

E eu pensando com meus botões como deveria ser estranho para uma criança aceitar outra, de repente, do nada como amigo e ainda mais dividir suas coisas.

Meu sobrinho, para lá de irritado, acabou dando um empurrão no amiguinho e a mãe ficou muito brava e me olhou muito sério, cobrando uma atitude.  Ela disse algo como “ e então, você não vai fazer nada?” – querendo que eu tomasse uma atitude repreensiva.

Perguntei para ela se ela poderia share o carro dela comigo naquela tarde porque precisaria fazer supermercado e estaria sem o meu.

A mulher me olhou atônita. Estarrecida. Olhos azuis lindos me bombardeando com pontos de interrogação gigantescos. Pareceu que eu lhe pedia a vida.

Perguntou se eu era a babá de meu sobrinho – e aí entra o preconceito: sou morena, estou num país de pessoas com pele clara e meu sobrinho tem a pele quase transparente...Só posso ser a babá sem noção!! 
Ignoro a cutucada racista – porque para ela era só um pensamento lógico (mesmo que eu fosse a babá, não poderia argumentar?!).
É só respirar fundo e não perder o foco, pensei na hora.

Respondo que não. Que sou tia e insisto se ela pode me emprestar o carro naquela tarde, afinal, estávamos ali juntas e poderíamos ser amigas se compartilhássemos as coisas.

Só então a ficha dela caiu.
Sorriu largo, perguntou se eu era argentina e pediu desculpas por ter insistido na estória do brinquedo.

O menino tinha liberdade para tentar pegar o brinquedo?  Tinha.
Tinha direito de pegar o brinquedo?  Não. Só se o dono permitisse.

O respeito à liberdade de não emprestar tinha que ser praticado, mas claro – eram crianças brincando - não saberiam fazer de forma suave.

Não achariam por solução um acordo, um diálogo filosófico ou humanitário.
Não achariam certo uma coisa, nem outra.  Só queriam o bendito balde!!

E aí vem uma adulta que diz uma coisa (até bonita e romântica na visão humanitária) e pratica outra?  
A educação da criança acaba sendo estranha: a mãe diz uma coisa mas no seu dia a dia pratica outra. Crianças percebem essas incoerências, inconscientemente.
Só pode dar confusão mesmo porque não se ensinou o limite.

Tem um humorista preso na França; seu filho não poderia desenhar na escola um papa com uma faca na boca; temos humoristas brasileiros que já foram muito censurados e processados por gente que se sentiu ofendida com brincadeiras deles e uma balança desequilibrada nesse mundo que está usando a religião como peso.

2 pesos e 2 medidas.

Não sejamos crianças. Não sejamos incoerentes.

Respeito é bom,
eu gosto e
pratico.

Espero que pratiquem comigo porque respeito é a margem que delimita a liberdade e o direito a fazer alguma ação para que possamos viver em harmonia.

 Ah! E sobre o balde das crianças... Eu e a mãe do garoto falamos que queríamos brincar também e pedimos o balde; dissemos que não tínhamos com o que brincar.
O balde foi emprestado pelo meu sobrinho e as pás pelo garotinho,  agora quase amigo.
Fizemos castelos que eles iam enfeitando – e desmontando também, crianças que eram.
Mas nós já estamos bem crescidinhos para fazer tanta bobagem, não estamos?



Caminhando e pensando

Lendo sobre as manifestações de ontem, no Tatuapé, por passagens de ônibus mais baratas, lembrei das de 2013 e conto para vocês o que me aconteceu em uma das primeiras passeatas:


E lá ia eu novamente andando pelo centro da cidade de São Paulo. Noite fria e com garoa.
                                                                                                                              
Desta vez coloquei só 1 fone.  Um só ouvido ocupado porque preciso ouvir o que se passa ao redor.

É dia de manifestação na cidade. Pelo preço da passagem, pela mobilidade, por isso e a
quilo.

Acabei de sair do trabalho e pretendo voltar para casa.
São tantos pontos de manifestações pipocando ao mesmo tempo que preciso traçar estratégias e escolher caminhos. Tenho que atravessar a cidade.

Bem ao fundo ouço o coro dos manifestantes cantando o hino nacional.
Peito fica cheio mas ainda não sei se os quero como representantes.

Quem são eles? O que querem? E por que me defendem? 
Defendem? Sou usuária de ônibus, carro, trem etc.

Acho que neste momento todo mundo está questionando esses aspectos numa tentativa de entendimento e assimilação dos fatos. Não está?

O raciocínio, por enquanto é simplista e simplório para mim: se for para quebrar tudo na cidade não precisa me representar. Tiro meu apoio emocional e social.

Por causa deles, hoje, tenho que caminhar mais do que o normal para chegar ao terminal de ônibus. 

E não estou sozinha. 
Caminhamos em bando, protegidos pela polícia civil.

A senhorinha que vai à minha frente na calçada anda com passinhos típicos de gente bem idosa, arrastando o pé e carrega no colo uma cachorrinha bem peluda, branquinha, com laços de fitas de cor rosa pregados nas orelhas e na fronte. Uma graça!
Faço careta para a cachorrinha que mexe as orelhas.

Estou com vontade de cantar -  e bem alto - o hino.  Mas estou na multidão que anda fora da rota das manifestações. Todo mundo quieto.

Os manifestantes estão em frente ao Teatro Municipal e estou chegando à rua 7 de Abril.
Andamos a passo de tartaruga agora. 
A polícia vai à frente marchando. 

O chão está escorregadio e nossa turma faz um silêncio mortal.
Passos lentos e arrastados.

Continuo atrás da senhorinha que carrega a cachorra. E a cachorra não para de me olhar – por falta de paisagem melhor, eu sei, e porque já mostrei a língua, levantei as sobrancelhas, fiquei vesga, pisquei e acenei para brincar com ela.

Claro que a cachorra sempre reagiu da mesma forma, mexendo as orelhas em direções diferentes conforme a estranheza às minhas micagens.

Me senti meio boba, sim, se é o que vocês estão pensando.
Além de colocar o pronome no lugar errado do pensamento e do texto, fiquei pensando: quer situação mais tola?

Estou na chuva fina, com o peito cantando o hino nacional, mas estou muda.

Não posso ultrapassar ninguém porque a polícia, supostamente, nos guarda da confusão e mantém um cordão humano logo à frente.

Não estou na multidão de manifestantes que carregam cartazes, só tenho pensamentos. 

Não tenho grito de guerra, só vontade de gritar. 

Normalmente não tenho mobilidade com veículos e, neste momento, nem a pé eu consigo me locomover na cidade.

Nada como fazer caretas para a cachorra de uma desconhecida!!
Distrai. Ajuda o tempo passar.

É só prestar atenção no chão enquanto brinca com a cadelinha. Está molhado demais, e a sujeira faz aquele pastrame escorregadio e estranho virar um sabão.

Lembrei-me do escritor famoso que estava atrás de mim na fila da pipoca do cinema, outro dia.
Querendo ensinar algo de ético, moral e civilizado para seu filho de uns 14, 15 anos, falou um monte na orelha do coitado que só estava interessado nos bumbuns e seios das lindas moças ao redor.

O sujeito até tinha razão. O problema foi o formato do ensinamento: o discurso. Hormônios costumam ensurdecer e dar brotoejas na pele de adolescentes quando os pais falam sem parar.  Uma alergia da idade!
Pela expressão do garoto, a falação do escritor entrou por um ouvido e saiu pelo outro.

As passeatas e manifestações talvez tenham o mesmo efeito: Nada!  nadica de pitibiribas!! Não somos tão maduros assim na democracia.
Ou somos?! 
Talvez consigam mostrar alguma coisa. 

Estou ficando ensopada, apesar do guarda chuva. O vento faz a garoa fininha vir por todos os lados e a senhorinha mudou a cachorra de ombro.

A cachorra continua me olhando e eu agora tapo o nariz porque há um cheiro estranho no ar e não sei se os gases que a polícia usa têm cheiro ou não. 
Cubro o nariz com o cachecol e presto atenção no chão porque chegamos à escada.

Descida para o terminal Bandeira. Escada do metrô está interditada.

A cachorrinha fica agitada – acho que é por causa do cheiro e porque tapei o nariz. Olhos fixos em mim. Levanto a sobrancelhas para ela e desço o primeiro degrau.

O hino nacional está sendo recomeçado e agora parece muito mais perto do que antes.
Desço o segundo degrau e acho que ele está muito pequeno. 
Quem fez essa escada calçava número 20. Não cabe o pé da gente!

Sempre achei esses degraus muito estreitos, mas hoje, especialmente, eles parecem menores e coloco mais um pé para baixo, e mais outro degrau e mais um para baixo, mas não encontro nada e escorrego o pé tentando encontrar um maldito degrau e vou deslizando à procura dele até que... 
Caio deitada no chão mais sujo da cidade.

Eca! Que nojo!

Ainda vejo a cachorra olhando para baixo, tentando escalar o ombro da senhorinha para acompanhar o meu desaparecimento. 
E ainda percebo a dona ajeitando novamente a coitada no ombro. Mas elas se vão.

Tenho certeza que aquela fofurinha usando laços queria avisar alguém que eu havia ficado para trás, estatelada no chão!

Levantei, acompanhei o hino – desta vez com toda a força que pude cantar - e cheguei ao ponto do meu ônibus. Sozinha.

Lotadaço! Cheinho da silva! 
Fila quilométrica e eu tive de esperar um monte para pegar um ônibus que eu conseguisse entrar e que ficou lotado ao longo do caminho.

Minha sorte foi que eu estava bastante molhada e suja – ninguém queria encostar em mim. Até que fui bem acomodada.

Acho que vou começar a me lambuzar com lama antes de tomar uma condução nessa cidade.  Quem sabe não sobem na minha cabeça como tem acontecido quando estou limpinha.

Pensando bem, acho que já sei qual meu posicionamento em relação àquele pessoal da manifestação.
  
Marcela Yoneda 2013

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Evolução estética









Abaixo as chapinhas!!
Abaixo as escovas definitivas!!
Overdose de cabelos lisos!

Posso entender a loucura da mulherada por cabelos escorridos e, segundo elas, “com aparência de arrumados”, certinhos, no fio reto que desce lisinho.
Também posso não gostar da ideia.

Nada contra.  Só gosto de diversidade!!
Quem disse que cabelos enroladinhos não têm aparência de arrumados?
A loucura pelos lisos precisa estar tão literalmente na cabeça de quase todas as mulheres?

Cadê os cabelinhos sararás, os enroladinhos, os cacheados, os ondulados, os pixains.  
Ovelhinhas equilibristas, lindíssimas, descansavam em muitas cabeças.
Cadê as cabecinhas de anjos, os rococós?
Barroco na cabeça, gente!!
Nada mais lindo que cachos balançantes enfeitando naturalmente as mulheres de todas as raças!

Mas as mulheres não querem mais.
Preferem perder o ritmo da dança dos fios e a naturalidade na aparência a terem seus cabelos enroladinhos. 
Querem dominar “os rebeldes”.
Abrem mão de sentirem uns pinguinhos gostosos de chuva para não terem os cabelos “danificados” - na verdade é só um voltar à forma original.
Vento no rosto, cabelo voando? 
Coisa de filme, para elas. Tudo meio engessadinho - voa, mas não muito.

E sempre tem o engraçadinho no farol, que grita para os pedestres ao primeiro pingo de chuva “olha a chapinha aí, mulherada!!!”
Pode observar a cena feminina: encolhidas, com as bolsas, sacolas, saquinhos plásticos, mãos dos amigos sobre as cabeças, fazendo telhadinho improvisado. Uma coreografia coletiva espontânea, protetora e delatora.

Conheço uma moça que diz ter gasto “um apartamento” para nunca mais ter cabelos encaracolados. Já disse a ela que com o rostinho que ela tem, se fosse careca seria linda do mesmo jeito.  Mas como entre o que uma pessoa sente e o que se acha que ela poderia sentir há um abismo...Dizer o que mais para a bela criatura?

E, por favor, não venham me dizer que clamo pelos cachos porque tenho cabelo liso, escorrido, daqueles que não para nem piolho.
Também não digam que é assim mesmo: quem tem liso, quer crespo; quem tem crespo, quer escorrido. 
Não é nada disso!   
É que fica muito chato ver todo mundo com cabelos igualmente lisos.

Muitas meninas "alisadas" me disseram: hoje em dia é assim! Como se domar os cabelos fosse uma evolução natural da parte feminina da humanidade.

Isso me faz pensar que vivíamos nas cavernas, respirávamos e cheirávamos à fumaça de lenha, só comíamos doce das frutas, exibíamos peitos caídos sem a menor cerimônia, tínhamos pés grossos e cabelos naturais...

Bem, talvez cabelos já com alguma gororoba de uma casca de árvore qualquer, porque nós, mulheres, sempre fomos bastante criativas para nos “arrumar”, não é?!


Ilustração:  Silvana Moretti

E o dia tem:  

Fundo musical da minha caixola: Fox Baiano - Zélia Duncan e Zeca Baleiro
https://www.youtube.com/watch?v=J6Usbz8dI70

Pensamento recorrente: livro de Valter Hugo Mãe:  Desumanização
Editora Cosac Naify

Cor da unha: francesinha

Anaconda do meu estômago pede:  purê de mandioquinha com raspas de casca de limão