quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Hoje apresento 2 crônicas que saíram na mídia, mas nunca foram postadas aqui: Gaitinha e Nirvana

Antes delas, vai uma indicação para quem gosta de literatura: 

visitem o blog "Palavra de Literatura" 


http://palavradeliteratura.blogspot.com.br/

Raimundo mantém esse blog cheio de excelente conteúdo - recomendo a todos!

Com você no coração, hoje, Raimundo!


E vamos aos textos:




Gaitinha


A primeira vez que vi um pen drive pensei que era uma mini gaita e assoprei-o.

Meus filhos viram tudo e ficaram estarrecidos.  Até hoje brincam com a estória.  E isso faz muitos anos.

A confusão se deu porque ainda não se vendia o produto aqui no Brasil como se vende hoje em qualquer canto, com tamanhos e cores mil. 

O pen drive que ganhamos - era uso coletivo da família, tamanha a raridade - chegou em casa num momento que eu não estava e foi deixado sobre a mesa para posterior apresentação, presumo.
Ele era prateado e do tamanho daquelas gaitinhas de chaveiros que me acompanharam a infância fazendo-me sentir bastante feliz musicalmente, embora eu não tocasse nada com nada. Só barulho.

Eu achava o máximo um instrumento tão pequeno obedecer ao sopro e à aspiração.  Dava para tocar, portanto, mesmo quando o fôlego acabava - era só aspirar pela boca e produzir mais um acorde. Fantástico!  Sem interrupções.

Pois bem, na época que babei no pen drive os computadores nem tinham a entrada ubs, ou é usb? - sopa infernal de letrinhas - e em casa, só o computador de meu marido comportava o tal acoplamento.

Lembro que fiquei bastante frustrada porque não era uma gaitinha de infância me visitando e porque eu podia guardar informações naquele trequinho... Podia transportar tudo ali compactado, mas para onde? Não se encaixava em lugar algum. Não me valia de nada.
Hoje, meu atual pen drive azulzinho, miudinho, tão bonitinho, que com santa paciência, guarda e zela pelos meus textos, e encaixa num montão de aparelhos, desmanchou.
Fiquei só com uma plaquinha. O invólucro de plástico despedaçou-se e aquelas minúsculas pecinhas que me lembram chicletinhos de antigamente me disseram “Oi” na cara dura.

Primeira reação: pânico! Não ousei mexer no que restou e que ainda estava encaixado no meu note book.

Saí correndo atrás do marido oriental:  aqueles olhinhos puxados tinham de valer alguma coisa numa hora dessas: já que não é pasteleiro, nem verdureiro... É engenheiro!  Foi a gozação que mais ouvi no tempo da faculdade... Engenheiro eletrônico, eletricista e mais alguma coisa do tipo.

Socorro! Todos meus textos estão aí! Tira para mim, sem destruir, vai!

Ele examina a pecinha e aperta mais os olhos, o que me preocupa porque já são tão pequenos - começo a achar que dancei na história.

Todas as minhas reflexões, expurgos, pensamentos tresloucados... Não importa o que sejam... Estão aí gravadinhos, em letrinhas combinadinhas, em formato de textos!!
Como podem, de uma hora para outra virarem apenas silício, plástico e metal ou sei lá o que, sem aviso?

Levei uma dura do filho, porque nunca faço back up - Cruzes!! ensinei esse cara a falar, mas não lembro de ter ensinado “back up” !!!

Levei outra dura do marido pelo mesmo motivo – aliás, um pouco pior - porque ele já me deu mais uma gaitinha, digo, pen drive, que guardei...Talvez na esperança de assoprá-lo escondidinha, num momento de saudosismo!!

Enfim, aquela parte que sobrou ainda funciona e, depois de um remendo que me lembrou um criativo origami cheio de fitas adesivas, tenho uma simpática carcaça de pen drive funcionando e me acompanhando novamente!

Aff! Foi só um susto! E vamos à cópia, sem falta!!

*** 


Nirvana 

Essa lista de músicas do meu celular tem vida própria e escolheu como trilha sonora de fim de expediente a “come...as you are...as you were...as I want you to be...Take your time!... Hurry up!” – Nirvana.

Não quero que venha mais nada nem ninguém.
Não combina.
Quero algo com cara de ponto final.

Beethoven - 7ª sinfonia, 2º Movimento – Opus 90.

OPUS - OPUS - OPUS!

O meu, no escritório, terminou. São mais de 7 da noite!!
Delirante, mas não combina também!
Acordes divinos demais para tanta coisa mundana: formiguinhas trabalhadoras. Muita gente. Suores e cheiros. Multidão. Gordurinhas saindo das calças das mais moças; homens engravatados com pastinhas debaixo do braço.  Zumbis - crianças que usam drogas e perambulam em turmas enormes pelo centro da cidade.

Agradeço a Liszt por ter transformado a sinfonia de Beethoven em uma versão que eu possa tentar tocar num piano. Embaralho os dedos, mesmo com os acordes mais simples. Não saberia quem acompanhar na sinfonia - os violinos me encantam, os oboés e os clarinetes são sedutores - Karajan que o diga.  

Av. São João, Praça da República, Av. São Luís.  Meu destino é o Terminal Bandeira para pegar o segundo ônibus com destino a Sto. Amaro – Zona Sul de São Paulo.
E eu, que hoje sou uma “robocope” modesta, com os fios do fone de ouvido, a bolsa, a echarpe, os óculos e sombrinha ... Tudo meio pendurado, meio caindo... Estou valente e morta por dentro. Desvio, também, dos zumbis.  Queria levar alguns para casa.  Dar banho, comida, olhar nos olhos, conversar, escutar músicas.

Desço o calçadão encharcado.  Sei que vou levar umas 3 horas para chegar em casa, porque chove demais e está tudo alagado. Tenho que atravessar a cidade para chegar em casa.

Sweet and lovely - Thelonius Monk - maravilhoso!  Mas também não combina.  Não há nada de sweet nessa mistureba andante em calçada que cheira urina humana.

Essas calçadas são grandes armadilhas. Ratoeiras.  Quero meu queijo!   Tem-se que andar olhando para o chão e ainda ficar esperta com os movimentos laterais. Segurar a bolsa é automático e obrigatório mas tem que parecer natural.

Há quinze minutos estava rindo com a confusão de uns relatórios, num ambiente climatizado, cercada de especialista em finanças e aparelhos moderníssimos. Agora, pura enxurrada.

Eu sei - Marisa Monte.  “sei que nada sei”!! – Sócrates resumido.   Adoro essa música e queria cantar para algumas autoridades “um dia vou estar na sua...e você vai estar... na minha”. Condição.  Quer trocar um dia só - eu perguntaria.  Queria ver como o sr. se sairia neste equilíbrio diário.

Engato minha marcha do “não” e vou disparando para os pedintes já conhecidos.  Cigarros, trocado, moedinha, pão.

Aprendi a ler lábios com os moradores de rua.  Não ouço nada, pois estou com os fones nos ouvidos, mas sei o que cada um pede.

Pão?

Ele pediu pão?  Não o reconheço de outros dias.

Paro.

Devo ter lido mal os lábios dele, ou talvez ele tenha a boca mole, dor de dente, má dicção... Sei lá.     Volto até o homem, tiro os fones e pergunto o que foi que ele pediu.
Pão, dona.  A senhora me compra um pão?  Tenho muito pouco dinheiro e quero voltar pra minha terra.  Não posso usar o dinheiro pra comer, mas tô morrendo de fome.

Caramba!  Além de olhos de flecha, o cara tinha um português correto demais para um pedinte, além de todos os dentes na boca.
E pedia um pão!

Devo ter desmaiado com o cheiro da urina esparramada na rua e estou delirando. Isso não está acontecendo - penso.    Sinalizo um ok  para ele.

E lá vamos nós no meio do nada cheio de gente, procurar um lugar que seja mais ou menos decente para comer.     Minha ideia é pagar um salgado para o homem, mas ele olha bem para a vitrine e pergunta:
-A senhora não acha que é muito caro pra pouca comida?  Quase 3 reais e pequeno.   A senhora não vai gastar isso não.

Realmente eu devo estar delirando, mas acho que não desmaiei, não.  Devo ter caído de cara na urina da rua e estou afogada!!  Um pedinte econômico.

- Se a senhora me acompanhar até ali - aponta para um lado que não sei exatamente o que tem depois da curva - a senhora pode gastar só 2 reais com um prato que é bem grande, do bandejão da prefeitura.
Começo a achar que depois da curva o cara vai me assaltar.  Mas estou pagando para ver.  Quero ir para casa - mesmo sem a carteira - pensando que não deixei alguém esfomeado no meio da rua.  

Sei que existem muitos esfomeados.  Já fiz trabalhos humanitários que a falta de tempo me comeram a continuação, mas este homem tinha algo na fome.

Fomos caminhando enquanto ele contava a sua história, que não relato aqui para não me estender, mas que me fizeram pensar em lhe dar uma padaria inteira, se pudesse.  E muita gente daria, diante de sua dignidade e correção.

Dou 5 reais.
Rio por dentro quando ele compra um prato para ele, outro ele pede para viagem e escolhe o lugar à mesa para sentar.
Abano a mão.  Ele se aproxima, diz palavras doces demais pra serem contadas - derreteram quando eu as ouvi.

Fico muda e sem ação.     Ele sorri.   Entrega o recibo da compra, faz uma reverência para mim, outra para o prato e começa a jantar, depois de alguns dias de fome.

Volto para o meu caminho me sentindo uma caquinha.  Tenho que percorrer novamente um bom trecho e a chuva continua a cair. Carrego aquele homem no meu coração.

Ponho os fones de ouvido e meu celular dispara “you...give  me something... something that nobodyelse can give...- Jamiroquai ”. 

Enfim meu celular acertou a trilha sonora.

Ah!  Cheguei em casa às 22:50h. 

Para São Paulo alagada está bom, vai!!


Um comentário:

  1. Marcela, fiquei honradíssimo com sua indicação do Palavra de Literatura. Por ter sido espontânea, e não fruto de troca de favores, como sói ocorrer em redes sociais. Por ter sido você, que considero uma prosadora talentosa. As duas crônicas acima só corroboram minha opinião. Elas têm uma comicidade discreta e são cheias de lirismo. São marcadas por uma subjetividade sensível que não resvala para a pieguice. Acho que as porções de virtude textual estão muito bem medidas e aplicadas. Tem mais?

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