Lendo sobre as manifestações de ontem, no Tatuapé, por passagens de ônibus mais baratas, lembrei das de 2013 e conto para vocês o que me aconteceu em uma das primeiras passeatas:
E
lá ia eu novamente andando pelo centro da cidade de São Paulo. Noite fria e com garoa.
Desta vez coloquei
só 1 fone. Um só ouvido ocupado porque
preciso ouvir o que se passa ao redor.
É dia de
manifestação na cidade. Pelo preço da passagem, pela mobilidade, por isso e
a
quilo.
Acabei de sair do
trabalho e pretendo voltar para casa.
São tantos pontos
de manifestações pipocando ao mesmo tempo que preciso traçar estratégias e
escolher caminhos. Tenho que atravessar a cidade.
Bem ao fundo ouço o
coro dos manifestantes cantando o hino nacional.
Peito fica cheio
mas ainda não sei se os quero como representantes.
Quem são eles? O
que querem? E por que me defendem?
Defendem? Sou
usuária de ônibus, carro, trem etc.
Acho que neste
momento todo mundo está questionando esses aspectos numa tentativa de
entendimento e assimilação dos fatos. Não está?
O raciocínio, por
enquanto é simplista e simplório para mim: se for para quebrar tudo na cidade
não precisa me representar. Tiro meu apoio emocional e social.
E não estou
sozinha.
Caminhamos em bando, protegidos pela polícia civil.
A senhorinha que
vai à minha frente na calçada anda com passinhos típicos de gente bem idosa,
arrastando o pé e carrega no colo uma cachorrinha bem peluda, branquinha, com
laços de fitas de cor rosa pregados nas orelhas e na fronte. Uma graça!
Faço careta para a
cachorrinha que mexe as orelhas.
Estou com vontade
de cantar - e bem alto - o hino. Mas estou na multidão que anda fora da rota
das manifestações. Todo mundo quieto.
Os manifestantes
estão em frente ao Teatro Municipal e estou chegando à rua 7 de Abril.
Andamos a passo de
tartaruga agora.
A polícia vai à frente marchando.
O chão está escorregadio e
nossa turma faz um silêncio mortal.
Passos lentos e
arrastados.
Continuo atrás da
senhorinha que carrega a cachorra. E a cachorra não para de me olhar – por
falta de paisagem melhor, eu sei, e porque já mostrei a língua, levantei as
sobrancelhas, fiquei vesga, pisquei e acenei para brincar com ela.
Claro que a
cachorra sempre reagiu da mesma forma, mexendo as orelhas em direções
diferentes conforme a estranheza às minhas micagens.
Me senti meio boba,
sim, se é o que vocês estão pensando.
Além de colocar o
pronome no lugar errado do pensamento e do texto, fiquei pensando: quer
situação mais tola?
Estou na chuva
fina, com o peito cantando o hino nacional, mas estou muda.
Não posso ultrapassar ninguém porque a polícia, supostamente, nos guarda da confusão e mantém um cordão humano logo à frente.
Não estou na
multidão de manifestantes que carregam cartazes, só tenho pensamentos.
Não tenho grito de
guerra, só vontade de gritar.
Normalmente não tenho mobilidade com veículos e, neste momento, nem a pé eu consigo me locomover na cidade.
Normalmente não tenho mobilidade com veículos e, neste momento, nem a pé eu consigo me locomover na cidade.
Nada como fazer
caretas para a cachorra de uma desconhecida!!
Distrai. Ajuda o
tempo passar.
É só prestar
atenção no chão enquanto brinca com a cadelinha. Está molhado demais, e a
sujeira faz aquele pastrame
escorregadio e estranho virar um sabão.
Lembrei-me do
escritor famoso que estava atrás de mim na fila da pipoca do cinema, outro dia.
Querendo ensinar
algo de ético, moral e civilizado para seu filho de uns 14, 15 anos, falou um
monte na orelha do coitado que só estava interessado nos bumbuns e seios das
lindas moças ao redor.
O sujeito até tinha
razão. O problema foi o formato do ensinamento: o discurso. Hormônios costumam
ensurdecer e dar brotoejas na pele de adolescentes quando os pais falam sem
parar. Uma alergia da idade!
Pela expressão do
garoto, a falação do escritor entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
As passeatas e
manifestações talvez tenham o mesmo efeito: Nada! nadica
de pitibiribas!! Não somos tão maduros assim na democracia.
Ou somos?!
Talvez
consigam mostrar alguma coisa.
Estou ficando ensopada,
apesar do guarda chuva. O vento faz a garoa fininha vir por todos os lados e a
senhorinha mudou a cachorra de ombro.
A cachorra continua
me olhando e eu agora tapo o nariz porque há um cheiro estranho no ar e não sei
se os gases que a polícia usa têm cheiro ou não.
Cubro o nariz com o cachecol e presto atenção no chão porque chegamos à escada.
Cubro o nariz com o cachecol e presto atenção no chão porque chegamos à escada.
Descida para o
terminal Bandeira. Escada do metrô está interditada.
A cachorrinha fica
agitada – acho que é por causa do cheiro e porque tapei o nariz. Olhos fixos em
mim. Levanto a sobrancelhas para ela e desço o primeiro degrau.
O hino nacional
está sendo recomeçado e agora parece muito mais perto do que antes.
Desço o segundo
degrau e acho que ele está muito pequeno.
Quem fez essa escada
calçava número 20. Não cabe o pé da gente!
Sempre achei esses
degraus muito estreitos, mas hoje, especialmente, eles parecem menores e coloco
mais um pé para baixo, e mais outro degrau e mais um para baixo, mas não
encontro nada e escorrego o pé tentando encontrar um maldito degrau e vou
deslizando à procura dele até que...
Caio deitada no chão mais sujo da cidade.
Caio deitada no chão mais sujo da cidade.
Eca! Que nojo!
Ainda vejo a
cachorra olhando para baixo, tentando escalar o ombro da senhorinha para
acompanhar o meu desaparecimento.
E ainda percebo a dona ajeitando novamente a coitada no ombro. Mas elas se vão.
E ainda percebo a dona ajeitando novamente a coitada no ombro. Mas elas se vão.
Tenho certeza que aquela fofurinha usando laços queria avisar alguém que eu havia ficado para trás, estatelada no chão!
Levantei,
acompanhei o hino – desta vez com toda a força que pude cantar - e cheguei ao
ponto do meu ônibus. Sozinha.
Lotadaço! Cheinho
da silva!
Fila quilométrica e eu tive de esperar um monte para pegar um ônibus que eu conseguisse entrar e que ficou lotado ao longo do caminho.
Fila quilométrica e eu tive de esperar um monte para pegar um ônibus que eu conseguisse entrar e que ficou lotado ao longo do caminho.
Minha sorte foi que
eu estava bastante molhada e suja – ninguém queria encostar em mim. Até que fui
bem acomodada.
Acho que vou
começar a me lambuzar com lama antes de tomar uma condução nessa cidade. Quem sabe não sobem na minha cabeça como tem
acontecido quando estou limpinha.
Pensando bem, acho
que já sei qual meu posicionamento em relação àquele pessoal da manifestação.
Marcela Yoneda 2013
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