De cueca, na varanda do apartamento, o vizinho da frente canta
óperas.
Faz apresentações brilhantes o rapaz.
Os amigos dele – sempre vestidos - costumam puxá-lo para dentro do
apartamento, mas ele apoia as mãos na grade da varanda e não arreda pé,
cantando uma ária inteira.
Se estiver bêbado, canta 2.
Dá para ver que ele está bêbado porque argumenta sua retirada da
varanda com dizeres de língua mole e está cambaleante.
Todo mundo sai na janela para vê-lo. Porque ouvir, a gente
ouve até com as janelas fechadas.
Parece jovem. Pulmão de nadador, que canta.
Ao final, o pessoal dos vários prédios ao redor do dele, o
aplaude. Inclusive eu!
Gosto quando ele fica bêbado. Canta muito!!
Outro dia, à noite, estávamos sem luz na rua depois de uma chuva
forte e o vizinho, quase-pelado-cantor-de-óperas, resolveu reclamar.
E, claro, ele não foi lá e gritou. Ele cantou como um barítono:
“Dilma, devolve minha luz! Diiiilmaaaa! Devolve minha luuuuz!!!”
Ao que alguém, de outro prédio, respondeu no mesmo tom...”e meu
dinheiro”... e outro completou “e minha paciência”.
Atitudes espontâneas, pipocadas aqui e ali por gente pensante e
bem humorada me divertem.
Minha rua é, na verdade, uma alameda – mão única, muito arborizada
e bem silenciosa.
À noite ouve-se todos os fluídos do seu corpo se movimentando nas
cachoeiras que ligam estômago, rins, baço, intestino. Fico imaginando a
trajetória.
Se você for asmático dormirá com um gato ronronando dentro de
você.
Uma delícia de rua. Sem barulhos de carros e motos que
costumam passar bem na hora do desfecho do filme que você está assistindo,
impedindo que você entenda o final.
Aqui não. Você amanhece com o bem te vi pai ensinando o bem
te vi filho, primos e amigos a cantar. Os sabiás andam na grama do
condomínio e as borboletas amarelas são figurinhas que fugiram da crônica do
Rubem Braga e brincam por aqui.
Outro dia foi um rapaz na portaria que fez o show.
Imaginem esse lugar silencioso, mais de 3 da matina de um domingo
e um moço que queria porque queria entrar no condomínio para falar com uma tal
Bárbara.
Quem era o moço? Só Deus e a Bárbara sabem, mas pelo desenrolar da
apresentação gratuita, ele levou um chutaço da Bárbara e queria voltar a
namorá-la. Mas veio pedir a volta durante a madrugada, bêbado, e com pulmão de
barítono.
Como o porteiro não permitiu a entrada dele, ele ficou no
portão...Contou a ela que ainda a amava, que tinha que entrar, que falaria com
os pais dela e toda a lenga a lenga que bêbados costumam falar.
O problema é que ele não falou, ele recitou. E recitou alto
todas as intenções e problemas que tiveram. Então o vizinho do
prédio da frente resolveu aconselhá-lo a ir para casa porque a Bárbara já
estava em outra, não o queria mais.
Mas o moço não concordou. Disse que ele estava enganado.
Nessas alturas o condomínio inteiro estava acordado e gargalhava
com o diálogo recitado e tresloucado de um bêbado conversando com um anônimo
insone sobre os problemas daquele namoro.
Recitar é uma coisa interessante. Parece coisa antiga, mas
ainda válida e me fez lembrar um tio avô que foi escalado para recitar, numa
apresentação escolar, um poema de Raimundo Correia.
Meu tio teve aquele branco que a gente tem quando está falando em público
e perde o fio da meada e enroscou bem no início, no verso que era: “... E vai-se
a primeira pomba”.
No aperto, ele soltou algumas pombas. Foram-se a segunda, a
terceira e a quarta pomba até que a professora conseguiu chegar no pé do palco
e cochichou a continuação do poema para desenroscá-lo.
Como quase ninguém sabia o poema, tudo passou despercebido, mas
ele gostava de contar a estória para ilustrar que o improviso vale para
qualquer ocasião; basta ser criativo. E, claro, ter um pombal!
Mas voltando ao rapaz da dor de cotovelo, alguém chamou a polícia
por causa do barulho e tudo se complicou.
Não porque os guardas levassem o namorado rejeitado num camburão.
É que eles acharam a situação ridícula e não quiseram
prendê-lo. Ao contrário, resolveram confortá-lo e com muito esforço para
não gargalhar alto (ouvíamos as risadas abafadas) danaram a
conversar. Podia-se ouvir os conselhos dos guardas e as lamúrias do
moço.
Convencidos de que ele tinha razão, os guardas passaram a chamar
pela tal Bárbara também:
-- Bárbara! Ô Bárbara! Dá uma chance pro rapaz!
Desce aqui. Conversa com ele.
-- Te amo, Bárbara! Te amo!! Desce aqui!
Por fim, o condomínio todo resolveu solucionar a situação e passou
a fazer coro pedindo que a tal Bárbara descesse para conversar com o ex, afinal
de contas todo mundo queria dormir.
Deu certo. Parou o barulho e a confusão. Ninguém sabe se reataram.
A Bárbara mudou-se daqui, o porteiro me contou. E eu sonhei,
naquela noite, com uma moça só de calcinha numa varanda, cantando óperas. Acho
que se chamava Bárbara.
Nenhum comentário:
Postar um comentário